C7 - CONSENTIMENTO
92. Generalidades
Em rigor, este preceito não seria indispensável, tendo em conta o regime geral do consentimento previsto nos arts. 38º e 39º CP. Este é, de resto, um dos aspectos que singulariza o Direito Penal em matéria de consentimento: a previsão de um regime geral da figura, no contexto da disciplina das derimentes gerais. A tendência do direito comparado é para inscrever o consentimento como uma causa de justificação exclusivamente associada às ofensas corporais e, por vias disso, arrumada no capítulo correspondente da parte especial do Código Penal.
93. Tipicidade e ilicitude
Trata-se seguramente de uma causa de justificação.
A existência de um consentimento justificante, no contexto de um paradigma dualista da concordância do portador concreto, pressupõe naturalmente o preenchimento da factualidade típica das ofensas corporais. E tanto do tipo objectivo como do tipo subjectivo. O art. 149º CP não se aplica, por isso, a factos ou eventos que, contendo embora com a integridade física ou a saúde, não configurem, todavia, ofensas corporais típicas.
94. Objecto do consentimento
À semelhança do que, em geral, acontece em relação às ofensas corporais se põe, com particular relevo doutrinal e pragmático, o problema do objecto do consentimento. E também aqui tem de se subscrever a resposta sustentada pela opinião dominante. No sentido de que o consentimento tem de abranger cumulativamente:
a) O resultado lesivo, já pelo seu relevo como dimensão do ilícito penal e como referente de segurança e estabilização do intersubjectiva; já, sobretudo, porquanto o poder de controlo sobre o resultado, como expressão concreta da lesão e da renúncia à tutela penal, é um elemento irredutível no regime do consentimento enquanto estatuto jurídico-penal da autonomia do portador concreto do bem jurídico.
b) A acção entendida como a identificação do agente e a determinação das pertinentes circunstâncias de tempo, lugar, etc.
95. Vícios da vontade
Para ser eficaz o consentimento tem de ser “livre e esclarecido” (art. 38º/2 CP). Por vias disso, o consentimento nas lesões corporais pressupõe normalmente um dever de esclarecimento ainda mais exigente do que o consagrado (art. 157º CP) para as intervenções médico-cirúrgicas. Além do mais, porquanto aqui não intervém nem faz sentido a invocação de qualquer limite correspondente ao chamado privilégio terapêutico, previsto para as intervenções médico-cirúrgicas (art. 157º CP).
Deve considera-se ineficaz o consentimento em dois grupos de casos:
1º Erro sobre a finalidade altruística;
2º Situação análoga à do direito de necessidade.
Apesar de tudo, é o erro espontâneo não dolosamente provocado, que suscita as maiores divergências. Descontada a orientação tradicional, propensa a dar relevância a todo o erro, perfilam-se duas correntes divergentes.
A primeira privilegiando a posição do agente (e destinatário da declaração do consentimento) e, por vias disso, considerando irrelevante o erro, salvo duas excepções:
a) Quando o erro é conhecido do agente, que dele se aproveita;
b) Quando sobre o agente impende o dever jurídico de esclarecer o ofendido.
A segunda entende, pelo contrário, que “o problema da origem do erro, saber se ele foi fraudulentamente provocado ou ficou a dever-se a outra razão, não tem significado para a eficácia do consentimento”. Por vias disso, estende a tese da invalidade do consentimento a todo o erro referido ao bem jurídico, mesmo espontâneo. O que significa tornar relevante o chamado erro na declaração e o erro sobre o conteúdo.
96. Bons costumes
A lei portuguesa exige os “bons costumes” em limite e eficácia do consentimento. O intérprete e aplicador do direito acabarão, assim, por se confrontar com as dificuldades conhecidas da experiência jurídico-penal comparatística.
Um dado, à partida, avulta como líquido: à vista da sua indeterminação e dos pertinentes comandos constitucionais (legalidade/determinabilidade), a cláusula dos bons costumes terá de ser interpretada restritivamente. De resto, não se trata de fazer depender a validade do consentimento da conformidade com os bons costumes. O que tem de se provar é, antes, que o facto contraria os bons costumes, devendo superar-se a favor do arguido – isto é: da validade do consentimento – os casos de dúvida.
Para além disso, parece igualmente pacífico que o referente dos bons costumes é o facto – a lesão da integridade física – e não o consentimento em si.
Antes de uma definição positiva de bons costumes, uma aproximação pela negativa, que se projecta em duas conclusões decisivas:
a) Ao contrário do entendimento dominante durante um logo período, a cláusula dos bons costumes não pode abrir porta à punição de lesões corporais (consentidas) em nome da sua imoralidade;
b) Em segundo lugar, os bons costumes não podem sustentar a punibilidade de lesões corporais consentidas só porque preordenadas à prática de condutas ilícitas, mesmo criminalmente ilícitas.
Pela positiva, a fronteira dos bons costumes passa pela distinção entre ofensas ligeiras e graves. Precisamente a divisória subjacente à separação entre os arts. 143º e 144º CP e, por vias disso, entre os crimes semi-públicos e públicos. “Feitas todas as contas, parece ser o carácter grave e irreversível da lesão que deve servir para integrar, essencialmente, embora não só, a cláusula dos bons costumes”. No sentido de que as lesões ligeiras escaparão, em princípio, à censura dos bons costumes. Só não será assim nos casos excepcionais em que a lesão consentida viola uma expressa proibição legal directamente referida ao bem jurídico típico das ofensas corporais, isto é, ditada pelo propósito de proteger a integridade física.
O quadro é radicalmente outro do lado das ofensas graves e irreversíveis, que, por via de regra, serão contrárias aos bons costumes. Só não será assim nos casos em que a lesão esteja ao serviço de interesses de superior e inquestionável dignidade, reconhecida pela ordem jurídica.