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D - O casamento como contrato: requisitos de fundo

54. O consentimento: características

Em matéria de casamento não é admissível um casamento sem vontade, no sentido de que não se pode permitir a continuação do casamento sem uma vontade perfeita, livre, esclarecida, dirigida, pelo menos, aos principais efeitos práticos do casamento, à prossecução da comunhão de vida que constitui a sua essência. É, assim, de dar uma importância superior à que é atribuída nos outros negócios jurídicos, ao princípio da vontade. Não atenuando esta por ideias de responsabilidade ou de confiança.

O consentimento deve ser pessoal, puro e simples, perfeito e livre.

O consentimento deve ser pessoal, no sentido de que há-de ser expresso pelos próprios nubentes, pessoalmente no acto da celebração. A vontade de contrair casamento é estritamente pessoal em relação a cada um dos nubentes (art. 1619º - a vontade de contrair casamento é estritamente pessoal em relação a cada um dos nubentes - CC). A lei admite, porém, o casamento por procuração, o qual constitui uma excepção, embora de limitado âmbito.

Só um dos nubentes pode fazer-se representar por procurador (arts. 1620º/1 CC; e 44º/1 CRC). Tem de tratar-se de procuração em que se confirmam poderes especiais para o acto, se individualize a pessoa do outro nubente e se indique a modalidade de casamento (arts. 1620º/2 CC; e 44º/2 CRC).

Note-se que, nos termos do art. 1628º-d CC, o casamento por procuração será inexistente se tiver sido celebrado depois de terem cessado os efeitos da procuração, se esta não foi concedida por quem nela figure como constituinte, ou quando for nula por falta de concessão de poderes especiais para o acto ou designação expressa do outro contraente. E, por força do art. 1621º/1 CC, cessam todos os efeitos da procuração pela sua revogação, pela morte do constituinte ou do procurador ou pela interdição de qualquer deles em consequência de anomalia psíquica. A simples revogação da procuração, independentemente de esta revogação ser levada ao conhecimento do procurador, faz cessar todos os seus efeitos.

O procurador para o efeitos de casamento é um mero representante na declaração. Não pode a vontade do constituinte ser uma vontade incompleta, a preencher pelo procurador.

O consentimento deve ser puro e simples: não pode se aposta ao casamento uma condição ou um termo (art. 1618º/2 CC). Qualquer cláusula deste tipo deve considerar-se não escrita por força do art. 1618º/2 CC. Portanto o casamento celebrado nestes termos será válido como se tivesse sido puro e simples o consentimento prestado.

A favor do carácter puro e simples do consentimento pode invocar-se a dignidade deste, afectando profundamente o estado dos nubentes, em termos de não poder ser um contrato temporário.

 

55. Perfeição do consentimento

O consentimento deve ser perfeito, em duplo sentido: devem ser concordantes uma com a outra as duas declarações de vontade que o integram; e, também, em cada uma dessas declarações de vontade deve haver concordância entre a vontade e a declaração.

Esta concordância é presumida pela lei, pois o art. 1634º CC, considera que a declaração de vontade no acto da celebração constituí presunção de que os nubentes quiseram contrair o matrimónio.

A divergência entre a vontade e a declaração está prevista no art. 1635º CC, que enumera diversas hipóteses em que o casamento pode ser anulado por falta de vontade. Deve entender-se que esta enumeração é taxativa, só sendo anulável o casamento nos casos que se integrem em qualquer uma destas factualidades típicas (art. 1627º CC).

A anulação pode ser requerida pelo próprios cônjuges ou por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento (art. 1640º/1 CC) dentro de três anos subsequentes à sua celebração ou, se o casamento era ignorado do requerente, nos seis meses seguintes à data que dele teve conhecimento (art. 1644º CC). A invocação do vício do casamento pelos próprios cônjuges justifica-se, e bem, pela importância que o consentimento, e um consentimento perfeito, têm na celebração do casamento.

A anulação do casamento simulado (art. 1635º/1-d CC), tal como a nulidade dos negócios jurídicos em geral, não pode ser oposta a terceiros que tenham acreditado de boa fé na validade do casamento (art. 243º CC).

Se tiver havido um simples desvio na vontade negocial, em termos do declarante executar voluntariamente o comportamento declarativo, querendo realizar um negócio jurídico, mas não o casamento, o casamento é anulável. Anulável a requerimento do nubente cuja vontade faltou (art. 1640º/2 CC), podendo a acção ser continuada pelos seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes se o autor falecer na pendência da causa, dentro dos três anos subsequentes à celebração do casamento ou, se este era ignorado do requerente, nos seis meses seguintes à data que dele teve conhecimento (art. 1644º CC).

 

56. Liberdade do consentimento

O consentimento deve ser livre, liberdade que a lei presume (art. 1634º CC). Para que o consentimento seja livre, é preciso que a vontade dos nubentes tenha sido formada com exacto conhecimento dos efeitos do contrato que vão celebrar, ou seja, do conteúdo do estado de casado. É, além disso, necessário que se tenha formado com liberdade exterior, sem pressão de violências ou ameaças. O primeiro aspecto integra-se na doutrina do erro; o segundo na doutrina da coacção.

Não assumem, assim, relevo, no casamento, nem o dolo nem o estado de necessidade.

a) Erro:

Segundo o art. 1636º CC (o erro que vicia a vontade só é relevante para efeitos de anulação quando recaia sobre qualidades essenciais da pessoa do outro cônjuge, seja desculpável e se mostre que sem ele, razoavelmente, o casamento não teria sido celebrado), o erro tem de recair sobre a pessoa com quem se realiza o casamento e versar sobre uma qualidade essencial desta. A relevância do erro no casamento depende dos seguintes pressupostos: deve recair sobre qualidade essencial da pessoa do outro cônjuge; ser próprio; desculpável; e que a circunstância sobre a qual o erro versou tenha sido determinante da vontade de contrair casamento.

O erro não há-de recair sobre qualquer requisito legal de existência ou validade do casamento (erro próprio).

O erro deve ser desculpável (art. 1686º CC): aquele em que não teria caído uma pessoa normal, perante as circunstâncias do caso, não pode ser invocado como pressuposto da invalidade do casamento.

Basta que o erro tenha sido essencial para o declarante na formação da sua vontade.

b) Coacção:

O art. 1638º CC (é anulável o casamento celebrado sob coacção moral, contanto que seja grave o mal com que o nubente é ilicitamente ameaçado, e justificado o receio da sua consumação), permite a anulação do casamento com fundamento em coacção. Entendendo-se por coacção, vício da vontade, o receio ou temor ocasionado no declarante pela cominação de um mal, dirigido à sua própria pessoa, honra, ou fazer da ou à de um terceiro.

Nos termos do art. 1638º/1 CC, é anulável o casamento celebrado sob coacção moral, desde que seja grave o mal com que o nubente foi ilicitamente ameaçado e justificado o receio da sua consumação.

Acentue-se que a coacção é relevante mesmo que a ameaça vise interesses patrimoniais e, quando tiver como objecto terceiro, seja qual for a relação entre esse terceiro e o declarante coagido.

Em matéria de casamento, não se distingue entre as hipóteses de a coacção provir de outro contraente ou de um terceiro.

c) Regime da anulabilidade por erro e coacção:

Quando verificados os pressupostos típicos do erro ou da coacção, o casamento é anulável os termos do art. 1631º-b CC (celebrado, por parte de um ou de ambos os nubentes, com falta de vontade ou com a vontade viciada por erro ou coacção). A acção de anulação pode ser intentada pelo cônjuge, enganado ou coacto, podendo prosseguir nela os seus parentes, ou afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa (art. 1641º - a acção de anulação fundada em vícios da vontade só pode ser intentada pelo cônjuge que foi vítima do erro ou da coacção; mas podem prosseguir na acção os seus parentes, afins na linha recta, herdeiros ou adoptantes, se o autor falecer na pendência da causa – CC), dentro dos seis meses subsequentes à cessação do vício (art. 1645º - a acção de anulação fundada em vícios da vontade caduca, se não for instaurada dentro dos seis meses subsequentes à cessação do vício – CC). A anulabilidade é sanável mediante confirmação (art. 288º CC). Confirmação que pode ser expressa ou tácita.

 

57. Capacidade

Atenta a importância pessoal e social do casamento, a lei pretende que os casamentos celebrados o sejam entre pessoas com capacidade para o fazerem. E não se limita a deixar a averiguação das capacidades para um momento posterior à celebração do casamento, com a consequente declaração de invalidade deste. Estabelece um rigoroso procedimento de averiguação das incapacidades, anterior ao casamento, de modo a que só se case quem for capaz, e casamentos celebrados não sejam dissolvidos por incapacidades dos cônjuges.

A lei pretende rodear de especiais precauções a celebração dos casamentos quanto à capacidade dos nubentes. Nesta ordem de ideias, estabelece um procedimento particularmente rigoroso e prévio de averiguação das incapacidades. Atentos os fins do casamento, são estabelecidas incapacidades diferentes das da generalidade dos negócios jurídicos, e, em certos casos, é previsto um regime mais severo de invalidade.

Contudo, como a lei pretende rodear de estabilidade o casamento e promover a sua celebração, há certos casos de violação de normas legais que ficam incapacidades que não são sancionadas, ou não o são nos termos severos em que o seriam nos negócios jurídicos em geral.

As incapacidades matrimoniais são geralmente designadas por impedimentos matrimoniais, na medida em que impedem a celebração do casamento.

A lei distingue (arts. 1601º, 1602º e 1604º CC) entre impedimentos dirimentes e simplesmente impedientes. Os primeiros implicam a anulação do casamento que tenha sido contraído apesar da sua existência (art. 1631º-a CC); os segundos aplicam outras sanções menos rigorosas do que a anulabilidade.

Outra classificação é a que distingue entre impedimentos absolutos, são verdadeiras incapacidades, pois se fundam numa característica da pessoa, impedindo-a de casar seja com quem for. Impedimentos relativos, são ilegitimidades que se fundam numa relação da pessoa com outra ou outras e só lhe proíbem o casamento com essa ou essas pessoas.

Os impedimentos também podem ser divididos entre dispensáveis e não dispensáveis, admitindo os primeiros, e não os segundos, dispensa. Sendo dispensa o acto pelo qual uma autoridade, atendendo às circunstâncias do caso concreto, autoriza o casamento nesse caso, não obstante a existência de determinado impedimento.
 

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