J - Caracteres do Direito da Família
30. Direito Civil ou Direito Público: o núcleo tradicional esvaziado
O Direito da Família nasceu fora da “invenção” romana do Direito Civil. O “nosso” Direito da Família foi “inventado” nos sécs. XII e XIII, enraizado nos Evangelhos, enquadrado pelo Direito Canónico que não é Direito Civil. Não visava propriamente assegurar a composição de interesses particulares, mas antes garantir que as relações entre os particulares decorressem segundo uma ordem “pública” pré-suposta. Daí a sua integração, tanto no domínio pessoal como no domínio patrimonial, por numerosas normas imperativas. Normas, assentes (interpretadas, integradas e aplicadas) na (pela) vontade do marido-chefe. O Direito da Família reflectia, a ordem pública geral, também ela decorrente da vontade do príncipe.
À medida que as relações familiares se vão privatizando, visando “só” assegurar os interesses, a felicidade das partes, como estas quiserem, o Direito da Família (tradicional) reduz-se e conhece o aparecimento, a seu lado, de outras normas de Direito.
Os interesses patrimoniais dos cônjuges passam a estar largamente submetidos a sua auto-regulamentação, em termos idênticos as da constituição de uma sociedade entre duas pessoas independentes. O princípio da liberdade das convenções antenupciais reflecte bem este ponto de vista. Algumas normas imperativas desta matéria destinam-se, sobretudo, a assegurar a igualdade entre os cônjuges, o equilíbrio dos seus interesse em alguns pontos fundamentais.
A violação dos deveres conjugais (do dever de respeito, do dever de fidelidade, do dever de coabitação, etc.), bem como a violação dos deveres dos pais para com os filhos, traduz-se normalmente, só na supressão do vínculo em que eles assentavam, na “liberdade do credor” (e, consequentemente, do “devedor”). A exigência do seu cumprimento está deixada, necessariamente, às forças do credor, ao azar do equilíbrio de forças dentro do casal ou na família, sempre variável, e só por acaso conduzindo à solução mais justa, mais jurídica.
31. Institucionalismo
É corrente na doutrina a afirmação de que o Direito da Família é um direito institucional: a família seria um organismo natural, dentro do qual existe um “direito”, uma ordenação íntima, que lhe é própria e na qual o legislador não deve intervir. Pelo contrário, este deve limitar-se a reconhecer esse direito interno da família. Direito que tem vindo a fornecer o conteúdo das principais normas do direito “estadual”, como as que impõem os direitos e os deveres pessoais.
Com ela não se deve querer reconsagrar a ideia de que a família é uma instituição natural, com a sua própria e imutável, “naturalmente” independente da lei do Estado. Ou que, entre família e sociedade, haveria necessariamente uma oposição, em termos de qualquer comunicação ser mortal para a família.
32. Coexistência, na ordem jurídica portuguesa, de Direito estadual e de Direito Canónico na disciplina da relação matrimonial
A maioria dos casamentos celebrados em Portugal é celebrada segundo a forma canónica. Não se trata, porém, de uma simples forma, na medida em que dela resultam efeitos jurídicos de Direito Canónico reconhecidos pelo Direito Civil. Assim, o conhecimento das causas referentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado pertence aos Tribunais e repartições eclesiásticas competentes. Há, assim, uma coexistência do Direito Canónico e Direito Civil, vigorando o primeiro quanto à forma de certos casamentos e quanto a algumas das suas consequências.
33. Permeabilidade do Direito da Família às transformações sociais
O Direito da Família é particularmente influenciado, por comparação ao que sucede com outros ramos do direito, pelas evoluções políticas e sociais. Por um lado, as grandes alterações políticas traduzem-se, mais ou menos rapidamente, em alterações do Direito da Família, muitas vezes ao arrepio do sentimento social.
Com a instauração da República, entre as primeiras medidas tomadas situam-se as referentes à instauração do casamento civil obrigatório e do divórcio, concedido este através de pressupostos muito liberais. A concordata entre Portugal e a Santa Sé, de 1940, tem de se entender como o resultado da evolução política iniciada em 1926. A revisão desta Concordata, no sentido de alargar a competência do Direito Civil e dos Tribunais civis em matéria de direito matrimonial, sucede-se de perto às alterações políticas de 1974. Para além disto, nos últimos decénios a evolução social da família tem sido muito rápida. E tem sido acompanhada, mas ou menos de perto, por profundas alterações no Direito da Família, tanto no direito matrimonial e no direito da filiação, como no próprio direito patrimonial.
34. Afectação de certas questões do Direito da Família a Tribunais de competência especializada
A “especialidade” da ordem familiar levou a atribuir múltiplas questões do Direito da Família a Tribunais especializados, os tribunais de família.
O legislador terá considerado aqui a existência de uma zona, radicalmente estranha ao Direito estadual, na qual só com particulares preocupações e com profundos conhecimentos é possível penetrar. Nesta ordem de ideias, criou órgãos jurisdicionais de competência especializada, com juízes, em princípio particularmente treinados, que intervirão com a necessária delicadeza no domínio do Direito da Família. Tribunais que, reflectindo esta ideia, compreenderão um corpo de assessores, constituído por indivíduos com conhecimentos especializados em matéria de ciências do homem e ciências sociais, para constituírem uma ponte entre a frieza e a abstracção do direito escrito, e a cambiante realidade social.
Mas haverá que ir mais longe. Aos Tribunais de família (por muito especializados e eficientes que sejam) haverá que substituir “comissões de família” visando promover, com os interessados, a auto-regulamentação dos seus interesse.