G - A desinstitucionalização da família: o direito público ao direito privado
15. O fraccionamento da família: o desaparecimento da autoridade do pai-chefe
O cosmos é presidido por Deus; o abade preside à vida do mosteiro beneditino; e o marido-pai preside à vida da família. Sem a paternidade de Deus, do abade, do marido, a natureza institucional (a natureza, o mosteiro, a família) será desprovida de alma, reduzida a uma mecânica externa e falível.
A dependência filial do homem perante Deus é uma das dimensões da sua liberdade de homem novo. O beneditino só o é desde o momento em que assume esta dependência filial perante o abade. Do mesmo modo, a mulher e os filhos dependem do marido-pai, ao qual devem estar sujeitos.
A associação familiar transformou-se em instituição divina. O carácter sacramental do casamento reconduziu-a, estrutural e dinamicamente, a uma instituição religiosa. A família e a célula básica da Igreja, ela própria Igreja em miniatura, com uma hierarquia chefiada pelo pai; que devia veicular, pela própria natureza das coisas, a doutrina da Igreja. Uma vez lei escrita, uma autoridade pessoal…
A família era, não só um utensílio de acção social da Igreja, mas também um instrumento no controlo do Estado ou do poder real sobre as populações.
Os textos destes séculos descrevem-nos, seja qual for o país, protestante ou católico, famílias rigidamente organizadas, com todos os seus membros dependentes da autoridade soberana e ilimitada do pai; a família-instituição posta ao serviço dos fins sociais.
Não se diga que o Direito que regulava esta família era Direito Civil, um Direito visando regular as relações livres entre iguais, ou um Direito desprovido de sanções.
O Direito da Família nesta época era inspirado pela ordenação social, esta animada pelo despotismo, estruturado por normas imperativas, fundadas na vontade do príncipe, sancionadas pela sua vontade.
Também na família, ao lado de regras éticas fundamentais, inspiradas do Direito canónico, ou consagradas directamente neste, a ordem era sustentada e mantida pela vontade do pai – fonte de Direito – e garantida pelas sanções aplicadas, quantas vezes com severidade excessiva, pelo chefe.
Mulher e filhos estavam na dependência do pai que lhes podia aplicar um larguíssimo número de sanções, que iam desde a privação de recursos materiais até às mais severas punições física e morais.
16. A recuperação da família pelo Direito do Estado (Direito Civil)
Foi contra a família-instituição religiosa, e não desde logo contra a família-instituição social, que surgiram ataques por parte dos protestantes e regalistas, primeiro, e depois por parte dos movimentos laicos do séc. XVIII e XIX. Atacaram precisamente o sinal da sua religiosidade, o controlo jurisdicional da Igreja, e o sinal da sua sacramentalidade, a indissolubilidade do vínculo matrimonial.
O período que vai até meados do séc. XIX, embora muito variável de país para país, é o da “questão do casamento civil”. Considerava-se que o casamento era matéria laica, dizendo só respeito à sociedade e ao Estado devendo, portanto, ser regulado pela normas do Direito estadual. O casamento tinha de ser o casamento civil. Como consequência lógica, passava-se a admitir o divórcio.
Contudo, nesta primeira fase não se pôs em causa, pelo menos a nível do Direito, a estrutura hierárquica da família dominada pelo pai. A mulher continuava sujeita ao marido na generalidade dos códigos civis e das legislações do séc. XIX, assim como os filhos estavam submetidos ao poder paternal; poder que se prolongava bastante no tempo; a maioridade era atingida só em idade relativamente avançada; cabia ao pai a representação da família e a administração dos seus bens; e mesmo a participação na vida política, como único cidadão com Direito a ela, ou como representante de todo o agregado familiar.
A família transforma-se num espaço privado, de exercício da liberdade própria de cada um dos seus membros, na prossecução da sua felicidade pessoal, livremente entendida e obtida. A ordem pública passa a ser vista como o resultado da interacção dos cidadãos, e não das famílias. E, de qualquer maneira, a família deixa de ser ou, mais precisamente, deixa de poder ser utilizada, como um instrumento dessa ordem. O espaço familiar é um espaço privado.
O Direito da Família deixa de ser um Direito Público, para ser Direito Civil, Direito Privado, de cidadãos iguais, livres de constrangimentos, exercendo a sua autonomia pessoal e patrimonial. Isto, tanto nas relações entre os cônjuges, como nas relações entre estes e os filhos.
Descobre-se, nesta altura, que a lei da família é realmente impotente para restaurar a harmonia. O Direito da Família é a lei das obrigações imperfeitas e das sanções imperfeitas. As suas (novas) normas quadram-se mal com o Estado como fonte de Direito. Desaparecido o chefe de família, cuja vontade era lei, a ordem pública e a lei do Estado dificilmente entram no âmbito privado em que se transformou a família. O Direito da Família falha, sobretudo, na regulamentação das relações pessoais. O Estado não pode obrigar uma mulher a amar o seu marido, ou um filho a respeitar os seus pais. O campo do Direito da Família é devolvido, sobretudo, à moral e aos costumes.