C10 - MAUS-TRATOS E INFRACÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
108. Generalidades
A função do art. 152º CP é prevenir as frequentes e, por vezes, tão “subtis” quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho. A necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos neste art. 152º CP resultou de um duplo factor: por um lado, o facto de muitos destes comportamentos não configurem em si o crime de ofensas corporais simples (art. 143º CP), como é o caso das condutas descritas no art. 152º/1-b) e c) CP; por outro lado, a criminalização destas condutas, com a consequente responsabilização penal dos seus agentes, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos.
109. O bem jurídico
A ratio do tipo não está, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam esta dignidade. Se, em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus-tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir.
110. O tipo objectivo de ilícito
O crime de maus-tratos, de sobrecarga ou de violação das normas de segurança no trabalho pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos. É, portanto um crime específico. Crime específico que será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituam crime, ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime.
Sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação existencial, de subordinação laboral, ou numa relação de coabitação conjugal ou análoga. Relativamente aos que se encontram numa relação de subordinação existencial, exige-se, ainda, que seja menor (de 18 anos) ou particularmente indefesa, em razão da idade, doença, deficiência física ou psíquica, ou gravidez.
111. O tipo subjectivo de ilícito
Este crime exige dolo. Todavia, uma vez que este crime tanto pode ser um crime de resultado (caso de maus-tratos físicos) como de mera conduta, como ainda noutra perspectiva, tanto pode ser um crime de dano como crime de perigo, o conteúdo do dolo é variável em função da espécie de comportamento do agente.
112. As formas especiais do crime
a) Comparticipação
O crime previsto no art. 152º CP é um crime específico, que tanto pode ser próprio como impróprio, isto é, a especial relação existente entre o agente e a vítima fundamenta, nuns casos, a ilicitude do comportamento, e, noutros, apenas agrava a ilicitude deste. Ora, atendendo-se quer à gravidade da pena, quer ao facto de poderem subsumir-se ao tipo legal condutas pela incomunicabilidade das relações especiais, funcionando, pois, a excepção prevista na parte final do art. 28º/1 CP. Autor ou cúmplice deste crime só pode ser, pois, quem estiver, para com o sujeito passivo, na relação prevista no tipo legal.
Relativamente a pessoas que estejam nas relações de protecção previstas, então já são possíveis as diversas espécies de autoria (nomeadamente a co-autoria) e a cumplicidade.
b) Concurso
Entre o crime de maus-tratos físicos ou psíquicos (art. 152º/1-a CP) e o crime de ofensas corporais simples (art. 143º/1 CP) existe uma relação de especialidade, só se aplicando, portanto, a pena estabelecida para aquele. O mesmo se diga da relação entre o crime de maus-tratos (psíquicos) através de ameaças (art. 152º/1-a, 2ª parte CP), e o crime de ameaça (art. 153º CP), de difamação (art. 180º CP) ou de injúria (art. 181º CP), em que também o concurso é aparente, cedendo estes àquele.
Entre o crime de maus-tratos e o crime de ofensas corporais graves (art. 144º CP) há uma relação de consumação, aplicando-se somente a pena prevista para este crime.
113. Agravação pelo resultado
O art. 152º/4 CP prevê duas hipóteses de agravação da pena dos crimes descritos no art. 152º/1, 2 e 3 CP. De acordo com o princípio geral de exclusão da responsabilidade penal objectiva, o resultado mais grave e não representado pelo agente tem de poder ser imputado ao agente a título de negligência (art. 18º CP).
A agravação da pena para prisão de 2 a 8 anos pressupõe o seguinte: lesão grave da integridade física (art. 152º/4-a CP); relação de adequação, segundo o juízo ex ante, entre a conduta ofensiva ou as múltiplas acções ofensivas da integridade física, a perigosidade das actividades ou a perigosidade resultante da não observância das regras de segurança no trabalho e a lesão corporal grave; não representação do resultado, embora o devesse ter representado (negligência inconsciente) ou representação, do risco da ocorrência de tal resultado, mas sem a conformação com tal risco (negligência consciente), pois caso o agente aceite o risco de tal resultado há o crime de ofensas corporais graves (art. 144º CP), aliás como refere a parte final do art. 152º/1-c CP.
A agravação da pena para prisão de 3 a 10 anos (art. 152º/4-b CP) pressupõe, do mesmo modo, que entre o resultado morte e os maus-tratos, físicos ou psíquicos, as actividades perigosas, o trabalho excessivo ou a não observância das regras de segurança haja uma relação de adequação (previsibilidade objectiva) e uma violação do dever subjectivo de cuidado.