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C9 - PARTICIPAÇÃO EM RIXA

 

100. Generalidades

A interpretação desenvolvida do tipo de crime de participação em rixa, bem como a mediação sobre as razões de política criminal que nortearam o legislador, a par da análise da técnica legislativa utilizada para prosseguir a protecção dos bens jurídicos são os principais instrumentos para alcançar a dilucidação relativa à qualificação e classificação deste tipo de crime.

 

101. Os bens jurídicos

A rixa pressupõe uma desordem, uma contenda física entre duas ou mais pessoas com golpes de reciprocidade. A conduta prevista no tipo de crime consiste em “intervir” ou “tomar parte”, assentando num envolvimento pessoal de cada um dos intervenientes, que contribuem desse modo para a desordem. É possível identificar, a partir desta ideia de rixa três elementos:

1) A existência de uma contenda, ou seja, uma briga envolvendo agressões físicas;

2) A participação de duas ou mais pessoas;

3) A vontade de intervir, ou tomar parte na rixa, pois está-se na presença de um tipo doloso.

O tipo legal de crime do art. 151º CP, pode interpretar-se como sendo pluriofensivo, integrando um leque de bens jurídicos que de forma mediata ou imediata conhecem nesta incriminação uma tutela penal.

Os bens jurídicos protegidos pelo art. 151º CP, são a vida (art. 131º CP) e a integridade física (art. 144º CP).

 

102. O tipo objectivo de ilícito

O tipo objectivo de ilícito consiste em intervir ou tomar parte em rixa de duas ou mais pessoas. É que a ocorrência da morte ou de uma ofensa à integridade física grave, embora seja um elemento do tipo legal condicionante da punibilidade, não integra, todavia, o conteúdo do ilícito da participação em rixa.

Considera-se que este tipo de crime deve ser classificado como crime de perigo, a conduta de intervir ou tomar parte na rixa revela-se por si perigosa para a vida e para a integridade física, para além de ameaçar toda uma série de bens jurídicos que de forma mediata surgem acautelados. No entanto, só pode responsabilizar-se a conduta dos que intervêm na rixa nos casos em que essa perigosidade assume maiores proporções, concretizadas na verificação de uma morte ou de um ofensa grave à integridade física. As condições objectivas de punibilidade, neste caso, constituem uma indicação de quais os bens jurídicos tutelados pela norma.

A morte ou às ofensa à integridade física graves constituem condições objectivas de punibilidade do tipo legal de crime. O preenchimento do tipo esgota-se com a intervenção ou com o facto de tomar parte numa rixa de duas ou mais pessoas, não constituem por isso resultado típicos do crime. A exigência da verificação dos respectivos bens jurídicos, bem pelo contrário, só seria incompatível a consideração da morte ou da ofensa grave como resultado do tipo.

  

103. O tipo subjectivo de ilícito

Exige o dolo em qualquer das suas formas contempladas no art. 14º CP: directo, necessário ou eventual. Mas este dolo refere-se exclusivamente à perigosidade da rixa e não ao resultado morte ou lesão corporal. Assim, é indiferente a representação ou não da eventualidade do resultado, indiscutível e suficiente é a representação e conformação com a perigosidade da rixa: dolo de perigo concreto. Sendo a morte ou a lesão corporal grave uma condição objectiva de punibilidade, evidente se torna a irrelevância da não representação ou da não conformação com um tal resultado.

Considerada a acção descrita no art. 151º/1 CP como um tipo legal de crime de perigo concreto, então não basta, para afirmação do respectivo dolo, a representação e conformação com a perigosidade abstracta da participação na rixa, mas exige-se o conhecimento do perigo que concretamente a rixa, em que se participa, constitui para a vida ou integridade física substancial.

 

104. As causas de justificação

Dadas as particularidades do crime de participação em rixa (contribuição causal e voluntária de cada um dos participantes na criação da situação de perigo para os bens vida e integridade física substancial), resulta complexa a questão da justificação, tanto mais quanto é certo que a prática de uma tal conduta de verdadeira participação em rixa nunca está ao serviço da realização de qualquer interesse juridicamente protegido.

Não tem sentido a invocação do consentimento, uma vez que, sendo este pressuposto pelo próprio conceito de rixa, mesmo assim a lei considera a rixa como crime. Além desta decisiva razão, acresce ainda o facto de estarem em causa bens jurídicos indisponíveis: a vida e a integridade física (art. 144º CP).

A única causa de justificação que é pensável em relação à participação em rixa é a legítima defesa, própria ou alheia. Todavia, em relação à legítima defesa própria, uma vez que cada um dos participantes é, simultaneamente, agressor e agredido, nunca poderá um participante na rixa exercer qualquer direito de legítima defesa, enquanto não abandonar, manifestamente, a rixa.

Diferente já é o caso da justificação de uma acção mortal praticada por um dos participantes sobre um outro que, no decurso da rixa constituída por ofensas corporais mesmo que graves, se decide e prepara para matar aquele. Aqui, poderá considerar-se justificado o homicídio com base no direito de necessidade defensiva, mas não a acção de participação em rixa.

Diferente é o tratamento da intervenção de um terceiro com o objectivo de separar os contendores ou de defender um deles. O art. 151º/2 CP contém uma disposição específica para estas situações: “a participação em rixa não é punível quando for determinada por motivo não censurável nomeadamente quando visar reagir contra um ataque, defender outrem ou separar os contendores”. Esta norma consagra expressamente um direito de intervenção de um terceiro alheio à criação ou desenvolvimento da situação de rixa.

Apesar de na simples rixa (tipo legal de perigo abstracto que, como não está previsto no art. 151º/1 CP) serem afectados apenas bens jurídicos disponíveis (a integridade física simples: arts. 143º e 149º/1 CP), deve entender-se que mesmo em relação a esta rixa mantém-se o direito de intervenção de terceiro, direito que, nesta hipótese, se traduz em separar os contendores.

Considerar-se-á agora, o direito de intervenção de terceiro, quando a rixa constitui um perigo concreto de lesão de vida ou da integridade física grave dos contendores:

a) A primeira hipótese prevista no art. 151º/2 CP – “quando visar reagir contra um ataque”. Quando alguém se vê obrigado a envolver-se fisicamente com outrem que o vai agredir, não está a participar ou a tomar parte numa rixa (nem sequer a pôr-lhe termo), mas pura e simplesmente a reagir contra uma agressão, face à qual tem o direito de legítima defesa ou, pelo menos, o direito de necessidade defensiva.

b) Segunda hipótese prevista no art. 151º/2 CP – “quando visar […] defender outrem” – contempla as situações em que, no decurso da rixa um ou alguns dos corrixantes se vêem na impossibilidade física de reagir contra as agressões do outro ou outros. A partir de um tal momento, a intervenção de um terceiro pode configurar-se como um direito de necessidade defensiva (“legítima defesa limitada”) alheia.

c) A terceira hipótese – “quando visar […] separar os contendores” – configura um direito de necessidade defensiva alheia. Cada um dos contendores, dada a indisponibilidade dos bens jurídicos lesados pela rixa, ou em risco de o serem, é simultaneamente agredido e agressor. Assim, o terceiro tem em relação a todos eles, enquanto agressores, o direito de impedir essas agressões. E, na medida em que todos são agressores, tem esse direito em relação a todos eles (contendores). A forma de impedir essas mútuas agressões é separá-los, pondo, assim, termo à rixa.

Esta intervenção positiva (no sentido de impedir danos ainda mais graves num dos rixantes ou de pôr termo à rixa) pode converter-se de um direito num dever, quando sobre o terceiro recaia um dever de garante, nos termos do art. 10º/2 CP, face aos rixantes ou algum deles. É claro que este dever de intervenção está condicionado à inexistência de riscos graves para a vida ou integridade física do terceiro.

 

105. As causas de exclusão de culpa

Nesta matéria, pouco há que registar de específico. Quanto aos verdadeiros participantes na rixa (art. 151º/1 CP), apenas haverá que ter em conta a eventual inimputabilidade (art. 20º/1 CP) dos ou de algum dos participantes. Quanto à intervenção de terceiro (art. 151º/2 CP), poderá haver situações de excesso no exercício do direito de intervenção, devido a eventuais perturbações não censuráveis (excesso do direito de necessidade defensiva), aplicando-se, analogicamente, o art. 32º/2 CP.

 

106. Morte ou ofensa corporal grave como condições objectivas de punibilidade

Por condições objectivas de punibilidade stricto sensu, entende-se as condições que se têm de verificar para que aqueles que praticam um facto típico ilícito e culposo possam ser punidos.

Integram a categoria analítica da punibilidade e constituem situações positivas de cuja verificação depende a possibilidade de responsabilização dos agentes. Para além de se registar a existência de algumas destas condições com carácter geral, alguns tipos legais, exigem especificamente que, para além da conduta do agente ter de preencher os elementos objectivos e subjectivos do tipo, tenha ainda de provocar a verificação de determinada situação objectiva.

No tipo legal de crime de participação em rixa a morte e a ofensa à integridade física constituem condições objectivas de punibilidade. Neste crime a conduta do agente consiste em intervir ou tomar parte na rixa, para o preenchimento do tipo de ilícito basta que alguém dolosamente intervenha ou tome parte na rixa de duas ou mais pessoas.

Para a punibilidade dos participantes, quer o dano se verifique num dos participantes, quer se verifique em terceiro que nada tenha a ver com a rixa; a única ligação necessária é de carácter puramente objectivo, e traduz-se na existência de uma imputação objectiva com a rixa. Podendo ocorrer a qualquer título de imputação subjectiva e em qualquer vítima.

 

107. As formas especiais do crime

a) Comparticipação

É um tipo legal de crime de comparticipação necessária.

b) Concurso

Excluída fica à partida, qualquer possibilidade de concurso com o crime de ofensas corporais simples (art. 143º CP). É que, pressupondo a participação em rixa a aceitação livre de recíprocas ofensas corporais, estas, quando simples, não podem ser consideradas ilícitas (art. 149º/1 CP).

Em rigor não se pode falar de verdadeiro concurso de crimes, mas tão só em concurso de normas (concurso legal) o que se traduz num problema de determinação da norma aplicável.

A relação de concurso aparente consagra-se por conexões de subordinação e hierarquia, podendo identificar-se essencialmente três tipos de relações: especialidade (sempre que um dos tipos incorpore os elementos essenciais do outro acrescentando-lhe elementos especializadores que pretendem conceder maior precisão àquela situação. Uma norma prevalece sobre a outra por particularizar dentro daquele tipo de crime a forma de cometimento do mesmo. Centra-se numa conexão de relatividade, uma norma é especial em relação a outra que é geral, ou então é ainda mais especializada do que outra já de si especial. Uma das normas contém todos os elementos da outra, aditando-lhe elementos suplementares que constituem a especialização); subsidiariedade (nos casos em que uma norma vê a sua aplicabilidade condicionada pela não aplicabilidade de outra norma, só se aplicando a norma subsidiária quando a outra não se aplique. A norma prevalente condiciona de certo modo o funcionamento daquela que lhe é subsidiária. Está-se perante um concurso por força da subsidiariedade nos casos em que as normas se condicionam expressamente, ou seja, por imposição da própria lei – subsidiariedade expressa; ou nos casos em que há uma relação lógica detectada através de um raciocínio interpretativo que permite extrair essa conclusão – subsidiariedade implícita.); consunção (sempre que um tipo de crime faça parte, por definição, de um outro. A descrição típica de uma norma é de tal forma ampla que acaba por abranger elementos da descrição típica da outra. O âmbito de protecção visado por uma das normas acaba por ser consumida pela norma mais abrangente, tornando dispensável a sua aplicação, uma vez que os interesses que pretende salvaguardar estão assegurados pela aplicação da outra. A relação de consumação acaba por colocar em conexão os valores protegidos pelas normas criminais. Não deve confundir-se com a relação de especialidade, pois ao contrário do que se verifica naquela relação de concurso de normas, a norma prevalente não tem necessariamente de conter na sua previsão todos os elementos típicos da norma derrogada).

Quanto ao concurso existente entre o tipo legal de crime de participação em rixa e o de homicídio. Sempre que esteja em causa determinar a responsabilidade daquele que durante uma rixa mata alguém, deve proceder-se no apuramento da sua responsabilidade criminal, a um concurso aparente, fruto da relação de consunção em que os tipos legais de crime de participação em rixa e de homicídio se encontram.

A relação concursal aqui existente estabelece-se entre um crime de dano e um crime de lesão para o mesmo bem jurídico[19].

O tipo legal de crime previsto no art. 151º CP procura tutelar a vida e a integridade física, e o âmbito desta tutela fica salvaguardado se for possível imputar ao agente a prática de um crime de homicídio, cuja abrangência envolve a tutela que a participação em rixa pretende proteger.

No que diz respeito ao crime de ofensa à integridade física grave, previsto no art. 144º CP, e à sua relação com a participação em rixa, entende-se haver igualmente um concurso aparente por força da consunção. As razões invocadas para o homicídio aplicam-se, mutatis mutandis, para este crime. O agente deve ser punido pelo crime mais grave por ele praticado, ou seja, o de ofensas corporais graves. Uma vez que esta situação configura um exemplo de dispensa de aplicação do crime de participação em rixa. Pois também aqui se pune a consumação da lesão e se deve afastar a incriminação do simples perigo por esta estar abrangida pela primeira.

Tratando-se de crimes que tutelam o mesmo bem jurídico, o crime de homicídio e o de participação em rixa, têm um campo de aplicação que se entrecruza. A participação na rixa protege a vida e a integridade física, nomeadamente em situações que envolvem perigo para esses bens jurídicos, mas só faz sentido responsabilizar o agente que com a sua conduta preenche os pressupostos desta incriminação se a sua conduta não lesou efectivamente a vida ou a integridade física de outros intervenientes ou de terceiro. Pois, neste caso, ele deverá ser incriminado pela norma mais abrangente e mais grave.

 

[19] Se o bem jurídico colocado em perigo e o que for efectivamente lesado não corresponderem, ou seja, se não se estiver perante o mesmo, o concurso será necessariamente efectivo, pois o desvalor do facto não pode ser abarcado por um só dos tipos de crime mas apenas por ambos em conjunto.
 

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