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C8 - INTERVENÇÕES E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS

 

97. Generalidades

O art. 150º CP deve ser lido numa relação de integração sistemática e de complementaridade normativa com os arts. 156º CP (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e 157º CP (dever de esclarecimento). Três preceitos que, no seu conjunto, dão corpo positivado ao regime jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. Trata-se, resumidamente, de um regime que se analisa em dois enunciados fundamentais: em primeiro lugar, a proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direcção dos crimes de ofensas corporais e de homicídio; em segundo lugar, a punição dos tratamentos arbitrários como um autónomo e especifico crime contra a liberdade.

O art. 150º CP ganha um duplo alcance normativo:

a) Por um lado, cabe-lhe dar expressão normativa à decisão político-criminal de excluir as intervenções médico-cirúrgicas do alcance das incriminações das ofensas corporais;

b) Por outro lado, cabe-lhe definir o sentido e alcance do conceito jurídico-penal de intervenção médico-cirúrgica, e, por vias disso, delimitar a área problemática coberta pelo regime jurídico-penal das intervenções médico-cirúrgicas.

 

98. A definição legal e os critérios da atipicidade

O enunciado da lei portuguesa – “não se consideram ofensa à integridade física” – é unívoco no sentido da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na perspectiva das ofensas corporais. E é assim tanto nos casos em que a intervenção tem sucesso como nos casos em que ela falha.

A lei portuguesa assumiu, de forma consequente, a solução doutrinal que coloca a intervenção medicamente indicada e prosseguida segundo as leges artis fora da área de tutela típica das ofensas corporais e do homicídio. A produção dos resultados indesejáveis só relevará como ofensa corporal típica, quando representar a consequência adequada da violação das leges artis.

Para exclusão das intervenções médico-cirúrgicas da factualidade típica das ofensas corporais é igualmente irrelevante a existência ou não de consentimento.

A definição legal de intervenção médico-cirúrgica integra um conjunto de elementos subjectivos e objectivos. Concretamente: dois elementos subjectivos e outros tantos de índole objectiva. Na síntese de Englisch, “só pode falar-se de intervenção terapêutica nos casos em, que se verifica, não apenas a indicação objectiva e a execução segundo as leges artis, mas também a direcção da vontade do agente para a terapia”. Numa aproximação mais analítica, do lado subjectivo exige-se, para além da específica qualificação do agente (há-de tratar-se de “médico ou pessoa legalmente autorizada”), a intenção terapêutica, compreendida pela lei portuguesa em termos particularmente amplos, abrangendo tanto o diagnóstico como a prevenção. Enquanto isto é do lado objectivo, exige-se a indicação médica e a realização segundo as leges artis.

Os quatro elementos são de verificação necessariamente cumulativa, resultando, por isso, reciprocamente redutores.

 

99. Criação de perigo por violação das “leges artis”

O art. 150º/2 CP, pôs de pé a criação de um perigo “para a vida” ou de “grave ofensa para o corpo ou para a saúde”, como consequência de violação das leges artis. Com a sua consagração, o legislador quis assumidamente alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos imputáveis aos médicos. Para além de responderem por ofensas corporais negligentes (art. 148º CP) e por intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (art. 156º CP), os médicos passariam a responder também por um novo crime, que terá sido pensado como um crime de perigo concreto.

No plano objectivo, a infracção configura um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. No tipo subjectivo só é punível o dolo, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde).
 

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