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A5 - INCITAMENTO OU AJUDA AO SUICÍDIO

 

27. Generalidades

O art. 135º CP pune quem incitar ou ajudar outrem ou suicídio.

Suicídio só pode ser a diminuição da própria vida pelo respectivo titular, tendo este o domínio do acontecimento.

Segue-se que uma tal atitude tem de ser consciente e voluntária porque “incitamento” tem a ver ou com a formação da decisão – o que obviamente não anula a vontade – ou com um seu encorajamento; e “ajuda” significa cooperação em algo que o ajudado conhece e pretende bem como reforço de tal pretensão.

Suicídio é pois um comportamento voluntário dirigido à própria morte, possuindo o autor o domínio do acontecimento e um limiar de consciência bastante para compreender o sentido existencial de tal conduta.

 

28. O bem jurídico

O bem jurídico típico é a vida humana e, mais precisamente a vida de outra pessoa.

É precisamente a identificação da vida humana (de outra pessoa) como bem jurídico tutelado que empresta à incriminação do incitamento ou ajuda ao suicídio a indispensável ligação material. Uma legitimação que alguns pretendem poder questionar ou mesmo minar, a partir da irrelevância ou indiferença do suicídio para a ordem jurídico-penal.

A circunstância de o art. 135º CP que incrimina autonomamente formas de participação no suicídio, estar inserido no capítulo dos crimes contra a vida, não significa que ali se proteja exclusivamente a vida humana.

Na verdade, se há indícios que, embora arrumados noutros títulos, por protegerem outros valores, não deixam de prever condutas também violadoras da vida humana, nada obsta que no art. 135º CP classificado pelo legislador como “crime contra a vida”, estejam em causa outras razões, para além da perigosidade para essa mesma vida das condutas ali incriminadas.

O significado de suicídio no art. 135º CP:

O incitamento ou a ajuda, para se manterem dentro do quadro legal do preceito referido, não podem ir ao ponto de negar, entendido o termo como privar, toda a autonomia e toda a parcela de liberdade de decisão. No suicídio tem de existir ainda vontade. Ora, quando há nele uma participação trata-se já de uma vontade que, embora não anulada, foi atingida por uma interferência com um sentido específico. A ilicitude de tais interferências reside, não só no perigo ou aumento de perigo para a vida, mas também na intervenção numa esfera de autonomia própria, maxime tratando-se de um acordo tão dramaticamente decisivo.

No art. 135º/1 CP suicídio consciente e livre tem na origem um desejo de morte não patológico. A capacidade de valoração e determinação da vítima não está sensivelmente afectada.

No art. 135º/2 CP suicídio com vontade imperfeita. Para além dos casos de ser efectuado por menores de 16 anos em que há presunção legal de incapacidade, tem na sua origem factos psicológicos mórbidos formalmente redutores do instinto de conservação. Tais circunstâncias, embora não supressoras da vontade geram estreitamento da liberdade.

 

29. A fronteira entre o suicido e o homicídio (autoria mediata)

A identificação das situações concretas de suicídio como pressuposto típico do crime de incitamento ou ajuda ao suicídio postula a definição de duas linhas divisórias que, com Roxin pode-se designar como fronteira externa e fronteira interna. A fronteira externa separa as águas entre o incitamento ou ajuda ao suicídio e o homicídio a pedido da vítima a partir da definição e valoração dos contributos da vítima e do terceiro, vistos no seu perfil exterior. Por seu turno, na fronteira interna procura determinar-se em que medida e independentemente do recorte exterior, as coisas se extremam a partir da situação psíquica ou espiritual da vítima.

Relativamente a esta questão, os autores e os tribunais têm acolhido privilegiadamente a duas correntes: a chamada solução da culpa (ou da exculpação) e a solução do consentimento.

A doutrina da culpa, a solução tradicional, é hoje particularmente representada por Roxin. Chama-se solução da culpa porque recorre à aplicação analógica das regras ou princípios da exclusão da culpa, nomeadamente a inimputabilidade e o estado de necessidade desculpante. Segundo ela, deverá afirmar-se a responsabilidade por homicídio em autoria mediata do terceiro quando a vítima actua em circunstâncias tais que, na hipótese de ela lesar bens jurídicos alheios, veria afastada a sua culpa. Na síntese de Roxin: “Não há suicídio quando o suicida se encontra numa situação que, segundo as regras correntes do direito penal, excluíra a culpa”.

A solução do consentimento, em vez de apelar para as regras e critérios da culpa, esta doutrina apela para as regras e critérios do consentimento e concretamente do consentimento “qualificado” subjacente ao homicídio a pedido da vítima. Que são critérios claramente mais exigentes e, por vias disso, a resultar num alargamento do universo dos casos de autoria mediata de homicídio, isto é, em alargamento da punição da comparticipação na autodestruição de outrem. Na verdade, agora só poderá falar-se de suicídio quando a vítima satisfaz as exigências do consentimento – livre e esclarecido – reforçadas sob a forma de pedido “sério, instante e expresso” (art. 134º CP).

Mais do que meros expedientes dogmáticos alternativos preordenados à superação do problema em exame, a solução da culpa e a solução do consentimento revelam dois grandes paradigmas de compreensão ética ético-jurídica do suicídio e da comparticipação do suicídio. E como tais susceptíveis de emergir em afloramentos próprios em praticamente todas as áreas problemáticas do regime jurídico-penal da comparticipação no suicídio.

Como resulta do art. 135º/2 CP a lei portuguesa afastou-se tanto da solução da culpa, como da solução do consentimento. Ao prescrever que o auxílio a menor de 16 anos determina a agravação da pena (do incitamento e ajuda ao suicídio) a lei admite eo ipso que possa haver suicídio de inimputável, nessa medida desrespeitando a solução da culpa (e, por maioria de razão, a solução do consentimento).

À luz do direito português vigente o que é decisivo é a capacidade para representar o carácter autodestrutivo da sua conduta e a liberdade para se decidir naquele sentido. Tal capacidade terá seguramente de denegar-se a um menor de 14 anos. É certo que também a inimputabilidade por anomalia psíquica há-de valer, em geral, como um sintoma daquela incapacidade. Só que aqui tudo dependerá, em definitivo, das circunstâncias pessoais do agente em concreto.

 

30. A conduta típica

Incrimina-se duas modalidades de conduta: o incitamento e a ajuda ao suicídio. Trata-se de condutas de sentido e compreensão idênticas às da instigação e cumplicidade, só que aqui não podem ser nomeadas em tais, uma vez que o suicídio não é um facto criminalmente típico e ilícito.

Não podem, em qualquer caso, valer como típicas condutas que correspondem ao exercício de um direito ou ao cumprimento de um dever.

* Incitar

Significa determinar outrem à prática do suicídio. A conduta do agente tem de desencadear um processo causal, sob a forma de influência psíquica sobre a vítima, despertando nela a decisão de pôr termo à vida. Tem de se tratar de uma decisão até ali inexistente: se a vítima já estava decidida a suicidar-se, a acção do agente já só poderá valer como ajuda. Pode incitar-se por qualquer meio desde que de meio idóneo e eficaz se trate. Por via de regra o incitamento será pessoal e individualizado, não estando porém, excluída a possibilidade de um incitamento colectivo.

* Ajudar

É toda a forma de cooperação que, não constituindo um incitamento, é causal em relação à conduta do suicida na sua conformação concreta. Pode ser ajuda “material ou moral” (art. 27º CP), física ou psíquica.

Incitar ou ajudar estão inscritas na factualidade típica como condutas alternativas, sendo qualquer delas bastante para, só por si realizar o ilícito típico.

 

31. Tipo subjectivo

As condutas de incitamento ou ajuda ao suicídio têm um sentido final nelas incorporado como qualidade própria e referido, justamente, à comissão do autocídio da vítima. No art. 135º CP não está pressuposto qualquer outro momento anímico autonomizável e fundamentador do ilícito. E nem um entendimento da vontade num sentido estrito, que não a deixe superar os limites dentro dos quais se explica o seu domínio, põe em causa esta afirmação. O objecto do dolo pode abranger um resultado material cuja realização seja efectuada por um terceiro no qual incidirá a atitude psicológica do autor, pelo menos enquanto representação.

O dolo no crime de incitamento ou ajuda ao suicídio compreende, no seu aspecto volitivo, uma atitude anímica tendente a provocar noutra pessoa uma decisão de suicídio ou a contribuir para a execução de um propósito suicida.

A infracção só é punível a título de dolo[3], sendo suficiente o dolo eventual. O dolo tem de abranger o suicídio: para além de compreender o incitamento ou a ajuda, tem de abarcar também a realização do suicídio. Se o agente sabe que a sua decisão não é livre e responsável, então ele “quer” cometer homicídio, devendo ser punido como tal. Já se o agente pensa, erradamente, que a decisão da vítima é livre e responsável ou que ainda há uma vontade de suicídio, então ele tenta cometer incitamento ou ajuda ao suicídio, quando, objectivamente, está a praticar homicídio. Contudo ele só poderá ser punido pela infracção menos grave, a do art. 135º CP. 

 

32. O resultado típico do art. 135º CP

O art. 135º CP prevê um crime de resultado.

Num crime de mera actividade, o dolo “deve abranger unicamente circunstâncias relativas à acção do agente, não sendo necessário que este queira ou conheça qualquer resultado não compreendido no tipo”. Portanto, para se considerar o art. 135º CP como prevendo um crime formal, o dolo do agente teria de dirigir-se apenas à própria acção idónea para o incitamento ou (e) para a ajuda ao suicídio.

Deve atender-se a que a relevância jurídico-penal dos comportamentos, tecnicamente classificados de determinação ou de cumplicidade, depende de ter havido actos executivos por parte do autor material.

 

33. As formas especiais do crime

a) Comparticipação

Não punibilidade da vítima sobrevivente da tentativa de suicídio. Não punibilidade que se mantém mesmo que tenha sido ela a determinar o agente à ajuda ao suicídio.

b) Tentativa

O facto só é punível “se o suicídio vier efectivamente a ser tentado ou a consumar-se”. A partir daqui questiona-se se a tentativa é ou não punível converte-se em boa medida num problema de índole prevalentemente dogmático-categorial. Tudo depende da estrutura típica da infracção, nomeadamente do sentido e alcance da consumação no complexo iter da incriminação.

c) Concurso

Se o agente incitar e ajudar a mesma pessoa cometerá apenas um crime de incitamento ou ajuda ao suicídio. Pode haver concurso ideal com outras infracções quando o meio utilizado para ajudar ou incitar configura um ilícito criminal, como o incêndio. Também pode haver concurso ideal na hipótese de suicídio de uma mulher grávida, em caso de aborto punível.

Pode haver concurso real com o homicídio a pedido da vítima. É o que acontece se o agente aceita, a pedido da vítima, dar o “golpe de misericórdia”. Também pode haver concurso real com o crime de homicídio. Tal será mesma a regra no chamado “suicídio alargado” que se dá quando o suicida arrasta para a morte outras pessoas, normalmente filhos menores ou outros dependentes.

 

34. Agravação

O art. 135º/2 CP prescreve a qualificação da infracção por circunstâncias atinentes à pessoa da vítima: ser menor de 16 anos ou ter a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente diminuída. Pelo menos ao nível  da pena abstracta, não revelam as circunstâncias atinentes ao agente, nomeadamente o facto de ele ter agido por motivos egoístas. A qualificação está prevista para uma fenomenologia relativamente extensa, onde podem ocorrer situações de homicídio em autoria mediata: a utilização da vítima da autodestruição como um “instrumento”. Antes de se proceder à subsunção do caso no regime do art. 135º/2 CP, há-de por isso, apurar-se se, em concreto, se está perante uma situação de autêntico suicídio. Ou se, inversamente, o caso não há-de, antes, ser levado à conta de homicídio.

 

[3] A negligência não é punível
 

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