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B1 - ABORTO

 

49. Introdução

Tal como decorre da própria lei, o legislador português adoptou a solução correspondente ao modelo das indicações. Partindo do princípio da dignidade penal do bem jurídico da vida intra-uterina, o legislador consagrou situações medicamente indicadas em que este valor pode ser sacrificado face a outros valores constitucionalmente relevantes. Isto significa essencialmente que a solução adoptada pelo legislador português se baseia na impunidade da interrupção da gravidez fundada numa ideia de conflito de valores. A concretização da solução desse conflito de valores dá-se exactamente pela regulamentação das indicações[14].

Deste modelo resulta um princípio de punibilidade do crime de aborto, em correspondência com a ideia de dignidade de protecção, constitucionalmente fundada, da vida intra-uterina.

 

50. O bem jurídico

O bem jurídico protegido no crime de aborto é a vida humana intra-uterina. Trata-se de um bem jurídico autónomo e também eminentemente pessoal. A autonomia do bem jurídico resulta da consideração de que, no crime de aborto, não está protegida a vida humana que é protegida nos crimes de homicídio, isto é, a distinção entre o crime de homicídio e de aborto não é uma mera distinção de objectos da conduta criminosa.

Ao poder-se afirmar que o bem jurídico principal é a vida intra-uterina, resultam daí imediatamente algumas consequências em termos de definição do objecto de protecção: tem que estar em causa a vida humana implantada no útero da mãe.

Pode dizer-se, em suma, que o bem jurídico fundamental dos crimes de aborto é a vida intra-uterina. Mas por forma diversa, intervêm ainda outros bens jurídicos na concreta conformação típica do crime de aborto, em especial os valores da liberdade e da integridade da mulher grávida.

 

51. O tipo objectivo de ilícito

Embora o tipo objectivo de ilícito não o refira expressamente, objecto de crime de aborto é o feto ou o embrião. O crime de aborto não distingue, para efeitos de punibilidade, entre feto e embrião, como cientificamente acontece.

O crime de aborto só se pode verificar até ao momento em que não se possa falar mais de vida intra-uterina e se verifique o início da vida humana para efeitos de tutela penal; pelo que a morte de uma criança após o início do acto de nascimento deverá ser equacionada no âmbito dos crimes contra a vida.

A acção tem que consistir em fazer abortar. A expressão utilizada pelo legislador português não é de todo inequívoca, pois abortar tanto significa expulsar o feto do ventre materno, como a eliminação do feto. Dada a configuração do tipo legal e o bem jurídico em causa, parece que o aspecto essencial é o resultado: morte do feto. O crime de aborto é pois um crime de resultado.

A forma por que se provoca a morte do feto é irrelevante. Tanto pode ser por intervenção directa sobre o feto como por intervenção indirecta, por actuação sobre a mulher grávida. Decisivo é que aquela actuação torne o feto incapaz de vida.

O tipo de crime de aborto, como crime de resultado que é, pode também ser cometido por omissão segundo as regras gerais (art. 10º CP). Saliente-se que o dever de garante recai sobre a mulher grávida, mas recai também sobre o médico e, eventualmente, sobre o pai.

O crime de aborto assume distintas ilicitudes consoante o agente em causa e consoante a mulher grávida preste o consentimento ao aborto ou não.

No caso mais grave, o crime pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum), tanto por um leigo, como por um médico[15], mas sem o consentimento da mulher grávida. Neste caso, aplicam-se as regras gerais da autoria e comparticipação.

A segunda hipótese é a de se verificar um crime comum, mas em que o aborto é realizado com o consentimento da mulher grávida. Agente e mulher grávida constitui um factor de redução do ilícito.

A terceira hipótese é a de ser a própria mulher grávida a realizar o aborto. O art. 140º/3 CP distingue a realização por facto próprio ou por facto alheio. Isto significa que a realização pela mulher grávida do aborto pode assumir a forma de autoria mediata, co-autoria ou autoria individual. Por outro lado, a mulher grávida pode, da mesma forma, ser responsabilizada pelo assentimento dado ao aborto. Naturalmente que, neste caso, para se verificar o assentimento é irrelevante saber de quem a iniciativa partiu.

 

52. O tipo subjectivo de ilícito

O crime de aborto tem de ser realizado dolosamente, sendo suficiente o dolo eventual. O dolo tem evidentemente que se referir também ao resultado: a morte do feto. Este aspecto pode contribuir para a resolução de problemas atinentes à punibilidade, ou não, do aborto nas hipóteses de tentativa de suicídio da mulher grávida.

No art. 140º CP vêem consideradas três modalidades de aborto:

1) Aborto consentido: é praticado com o consentimento da mãe (art. 140º/2 CP), neste tipo legal de crime o consentimento é um elemento positivo do tipo, para estar preenchido o tipo tem que haver consentimento.

2) Aborto passivo: vem tipificado no art. 140º/1 CP, a diferença é a ausência do consentimento, é um elemento negativo do tipo. O tipo para estar preenchido é necessário a ausência do consentimento.

3) Aborto activo: o art. 140º/3 CP refere-se à conduta da mãe, ou ao dar consentimento que se faça o aborto (o que é por si crime) ou à conduta de ela própria se fazer abortar. Dar consentimento para praticar o aborto é uma conduta que é crime.

 

53. As formas especiais do crime

a) Tentativa

Não haverá punibilidade da tentativa seja para terceiro, seja para a mulher grávida – nos casos em que a mulher grávida tente abortar ou der assentimento a um aborto tentado. Mantém-se porém, punível a tentativa do crime de aborto mais grave, portanto, sem consentimento da mulher grávida. Em regra, a tentativa iniciar-se-á com a intervenção corporal sobre a mulher, em ordem a produzir o aborto. São pensáveis as tentativas impossíveis e são também aplicáveis as regras gerais da desistência.

b) Comparticipação

A mulher grávida é quase exclusivamente punível como autora. É possível a afirmação da cumplicidade por um terceiro.

c) Concurso

Uma vez que o bem jurídico protegido pelo crime de aborto é um bem jurídico pessoal, a pluralidade de abortos implicará por regra a pluralidade de crimes.

As hipóteses de concurso de crimes podem manifestar-se de forma algo complexa nos casos de aborto sem consentimento. De facto, o preenchimento do art. 140º/1 CP envolverá necessariamente o preenchimento de crimes contra a integridade física e contra a liberdade. Aplicar-se-ão aqui as regras gerais para esta forma de concurso de crimes.

No caso do aborto consensual já não serão pensáveis – além dos casos previstos no art. 141º CP – hipóteses de concurso. Eventualmente pode estar associado a crimes como o de usurpação de funções (art. 358º-b CP) etc.

 

[14] A indicação médica – em sentido estrito – e em sentido lato; a indicação feteopática e a indicação criminológica.

[15] Se não se verificar uma das indicações previstas no art. 142º CP.
 

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