A - Introdução
O conceito de administração
1. As necessidades colectivas e a Administração Pública
Quando se fala em Administração Pública, tem-se presente todo um conjunto de necessidades colectivas cuja satisfação é assumida como tarefa fundamental para a colectividade, através de serviços por esta organizados e mantidos
Onde quer que exista e se manifeste com intensidade suficiente uma necessidade colectiva, aí surgirá um serviço público destinado a satisfaze-la, em nome e no interesse da colectividade.
As necessidades colectivas situam-se na esfera privativa da Administração Pública, trata-se em síntese, de necessidades colectivas que se podem reconduzir a três espécies fundamentais: a segurança; a cultura; e o bem-estar.
Fica excluída do âmbito administrativo, na sua maior parte a necessidade colectiva da realização de justiça. Esta função desempenhada pelos Tribunais, satisfaz inegavelmente uma necessidade colectiva, mas acha-se colocada pela tradição e pela lei constitucional (art. 205º CRP), fora da esfera da própria Administração Pública: pertencer ao poder judicial.
Quanto às demais necessidades colectivas, encontradas na esfera administrativa e dão origem ao conjunto, vasto e complexo, de actividades e organismos a que se costuma chamar Administração Pública.
2. Os vários sentidos da expressão “Administração Pública”
São dois os sentidos em que se utiliza na linguagem corrente a expressão Administração Pública: (1) orgânico; (2) material ou funcional.
A Administração Pública, em sentido orgânico, é constituída pelo conjunto de órgãos, serviços e agentes do Estado e demais entidades públicas que asseguram, em nome da colectividade, a satisfação disciplinada, regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar.
A administração pública, em sentido material ou funcional, pode ser definida como a actividade típica dos serviços e agentes administrativos desenvolvida no interesse geral da comunidade, com vista a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar, obtendo para o efeito os recursos mais adequados e utilizando as formas mais convenientes.
3. Administração Pública e Administração Privada
Embora tenham em comum o serem ambas administração, a Administração Pública e a Administração Privada distinguem-se todavia pelo objecto que incidem, pelo fim que visa prosseguir e pelos meios que utilizam.
Quanto ao objecto, a Administração Pública versa sobre necessidades colectivas assumidas como tarefa e responsabilidade própria da colectividade, ao passo que a Administração Privada incide sobre necessidades individuais, ou sobre necessidades que, sendo de grupo, não atingem contudo a generalidade de uma colectividade inteira.
Quanto ao fim, a Administração Pública tem necessariamente de prosseguir sempre o interesse público: o interesse público é o único fim que as entidades públicas e os serviços públicos podem legitimamente prosseguir, ao passo que a Administração Privada tem em vista naturalmente, fins pessoais ou particulares. Tanto pode tratar-se de fins lucrativos como de fins não económicos e até nos indivíduos mais desinteressados, de fins puramente altruístas. Mas são sempre fins particulares sem vinculação necessária ao interesse geral da colectividade, e até, porventura, em contradição com ele.
Quanto aos meios, também diferem. Com efeito na Administração privada os meios, jurídicos, que cada pessoa utiliza para actuar caracterizam-se pela igualdade entre as partes: os particulares, são iguais entre si e, em regra, não podem impor uns aos outros a sua própria vontade, salvo se isso decorrer de um acordo livremente celebrado. O contracto é assim, o instrumento jurídico típico do mundo das relações privadas
Pelo contrário, a Administração Pública, porque se traduz na satisfação de necessidades colectivas, que a colectividade decidiu chamar a si, e porque tem de realizar em todas as circunstâncias o interesse público definindo pela lei geral, não pode normalmente utilizar, face aos particulares, os mesmos meios que estes empregam uns para com os outros.
A lei permite a utilização de determinados meios de autoridade, que possibilitam às entidades e serviços públicos impor-se aos particulares sem ter de aguardar o seu consentimento ou mesmo, fazê-lo contra sua vontade.
O processo característico da Administração Pública, no que se entende de essencial e de específico, é antes o comando unilateral, quer sob a forma de acto normativo (e temos então o regulamento administrativo), quer sob a forma de decisão concreta e individual (e estamos perante o acto administrativo).
Acrescente-se, ainda, que assim como a Administração Pública envolve, o uso de poderes de autoridade face aos particulares, que estes não são autorizados a utilizar uns para com os outros, assim também, inversamente, a Administração Pública se encontra limitada nas sua possibilidades de actuação por restrições, encargos e deveres especiais, de natureza jurídica, moral e financeira.
4. A Administração Pública e as funções do Estado
a) Política e Administração Pública:
A Política, enquanto actividade pública do Estado, tem um fim específico: definir o interesse geral da actividade. A Administração Pública existe para prosseguir outro objectivo: realiza em termos concretos o interesse geral definido pela política.
O objecto da Política, são as grandes opções que o país enfrenta ao traçar os rumos do seu destino colectivo. A da Administração Pública, é a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas da segurança, cultura e bem-estar económico e social.
A Política reveste carácter livre e primário, apenas limitada em certas zonas pela Constituição, ao passo que a Administração Pública tem carácter condicionado e secundário, achando-se por definição subordinada às orientações da política e da legislação.
Toda a Administração Pública, além da actividade administrativa é também execução ou desenvolvimento de uma política. Mas por vezes é a própria administração, com o seu espírito, com os seus homens e com os seus métodos, que se impõe e sobrepõe à autoridade política, por qualquer razão enfraquecida ou incapaz, caindo-se então no exercício do poder dos funcionários.
b) Legislação e Administração:
A função Legislativa encontra-se no mesmo plano ou nível, que a função Política.
A diferença entre Legislação e Administração está em que, nos dias de hoje, a Administração Pública é uma actividade totalmente subordinada à lei: é o fundamento, o critério e o limite de toda a actividade administrativa.
Há, no entanto, pontos de contacto ou de cruzamento entre as duas actividades que convém desde já salientar brevemente.
De uma parte, podem citar-se casos de leis que materialmente contêm decisões de carácter administrativo.
De outra parte, há actos da administração que materialmente revestem todos o carácter de uma lei, faltando-lhes apenas a forma e a eficácia da lei, para já não falar dos casos em que a própria lei se deixa completar por actos da Administração.
c) Justiça e Administração Pública:
Estas duas actividades têm importantes traços comuns: ambas são secundárias, executivas, subordinadas à lei: uma consiste em julgar, a outra em gerir.
A Justiça visa aplicar o Direito aos casos concretos, a Administração Pública visa prosseguir interesses gerais da colectividade. A Justiça aguarda passivamente que lhe tragam os conflitos sobre que tem de pronunciar-se; a Administração Pública toma a iniciativa de satisfazer as necessidades colectivas que lhe estão confiadas. A Justiça está acima dos interesses, é desinteressada, não é parte nos conflitos que decide; a Administração Pública defende e prossegue os interesses colectivos a seu cargo, é parte interessada.
Também aqui as actividades frequentemente se entrecruzam, a ponto de ser por vezes difícil distingui-las: a Administração Pública pode em certos casos praticar actos jurisdicionalizados, assim como os Tribunais Comuns, pode praticar actos materialmente administrativos. Mas, desde que se mantenha sempre presente qual o critério a utilizar – material, orgânico ou formal – a distinção subsiste e continua possível.
Cumpre por último acentuar que do princípio da submissão da Administração Pública à lei, decorre um outro princípio, não menos importante – o da submissão da Administração Pública aos Tribunais, para apreciação e fiscalização dos seus actos e comportamentos.
d) Conclusão:
A Administração Pública em sentido material ou objectivo ou funcional pode ser definida como, a actividade típica dos organismos e indivíduos que, sob a direcção ou fiscalização do poder político, desempenham em nome da colectividade a tarefa de promover à satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar económico e social, nos termos estabelecidos pela legislação aplicável e sob o controle dos Tribunais competentes.
A função Administrativa é aquela que, no respeito pelo quadro legal e sob a direcção dos representantes da colectividade, desenvolve as actividades necessárias à satisfação das necessidades colectivas.
Os sistemas administrativos
5. Generalidades
Por Sistema Administrativo entende-se um modo jurídico típico de organização, funcionamento e controlo da Administração Pública.
Existem três tipos de sistemas administrativos: o sistema tradicional; o sistema tipo britânico (ou de administração judiciária) e o sistema tipo francês (ou de administração executiva).
6. Sistema administrativo tradicional
Este sistema assentava nas seguintes características:
a) Indeferenciação das funções administrativas e jurisdicional e, consequentemente, inexistência de uma separação rigorosa entre os órgãos do poder executivo e do poder judicial;
b) Não subordinação da Administração Pública ao princípio da legalidade e consequentemente, insuficiência do sistema de garantias jurídicas dos particulares face à administração.
O advento do Estado de Direito, com a Revolução Francesa, modificou esta situação: a Administração Pública passou a estar vinculada a normas obrigatórias, subordinadas ao Direito. Isto foi uma consequência simultânea do princípio da separação de poderes e da concepção da lei – geral, abstracta e de origem parlamentar – como reflexo da vontade geral.
Em resultado desta modificação, a actividade administrativa pública, passou a revestir carácter jurídico, estando submetida a controlo judicial, assumindo os particulares a posição de cidadãos, titulares de direitos em face dela.
7. Sistema administrativo de tipo britânico ou de administração judiciária
As características do sistema administrativo britânico são as seguintes:
a) Separação dos poderes: o Rei fica impedido de resolver, por si ou por concelhos formados por funcionários da sua confiança, questões de natureza contenciosa, por força da lei da “Star Chamber”, e foi proibido de dar ordens aos juízes, transferi-los ou demiti-los, mediante o “Act of Settelement”;
b) Estado de Direito: culminando uma longa tradição iniciada na Magna Carta, os Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos britânicos foram consagrados no Bill of Rights. O Rei ficou desde então claramente subordinado ao Direito em especial ao Direito Consuetudinário, resultante dos costumes sancionados pelos Tribunais (“Common Law”);
c) Descentralização: em Inglaterra cedo se praticou a distinção entre uma administração central e uma administração local. Mas as autarquias locais gozavam tradicionalmente de ampla autonomia face a uma intervenção central diminuta;
d) Sujeição da Administração aos Tribunais Comuns: a Administração Pública acha-se submetida ao controle jurisdicional dos Tribunais Comuns;
e) Sujeição da Administração ao Direito Comum: na verdade, em consequência do “rule of law”, tanto o Rei como os seus conselhos e funcionários se regem pelo mesmo direito que os cidadão anónimos;
f) Execução judicial das decisões administrativas: de todas as regras e princípios anteriores decorre como consequência que no sistema administrativo de tipo britânico a Administração Pública não pode executar as decisões por autoridade própria;
g) Garantias jurídicas dos administrados: os particulares dispõem de um sistema de garantias contra as ilegalidades e abusos da Administração Pública.
8. Sistema administrativo de tipo francês ou de administração executiva
As características iniciais do sistema administrativo Francês são as seguintes:
a) Separação de poderes: com a Revolução Francesa foi proclamado expressamente, logo em 1789, o princípio da separação dos poderes, com todos os seus corolários materiais e orgânicos. A Administração ficou separada da Justiça;
b) Estado de Direito: na sequência das ideias de Loke e de Montesquieu, não se estabeleceu apenas a separação dos poderes mas enunciam-se solenemente os direitos subjectivos públicos invocáveis pelo o indivíduo contra o Estado;
c) Centralização: com a Revolução Francesa, uma nova classe social e uma nova elite chega ao poder;
d) Sujeição da Administração aos Tribunais Administrativos: surgiu assim uma interpretação peculiar do princípio dos poderes, completamente diferente da que prevalecia em Inglaterra, se o poder executivo não podia imiscuir-se nos assuntos da competência dos Tribunais, o poder judicial também não poderia interferir no funcionamento da Administração Pública;
e) Subordinação da Administração ao Direito Administrativo: a força, a eficácia, a capacidade de intervenção da Administração Pública que se pretendia obter, fazendo desta uma espécie de exército civil com espírito de disciplina militar, levou o “conseil d' État” a considerar, ao longo do séc. XIX, que os órgãos e agentes administrativos não estão na mesma posição que os particulares, exercem funções de interesse público e utilidade geral, e devem por isso dispor quer de poderes de autoridade, que lhes permitam impor as suas decisões aos particulares, quer de privilégios ou imunidades pessoais, que os coloquem ao abrigo de perseguições ou más vontades dos interesses feridos;
f) Privilégio da Execução Prévia: o Direito Administrativo confere, pois, à Administração Pública um conjunto de poderes “exorbitantes” sobre os cidadãos, por comparação com os poderes “normais” reconhecidos pelo Direito Civil aos particulares nas suas relações entre si. De entre esses poderes “exorbitantes”, sem dúvida que o mais importante é, no sistema Francês, o “privilégio de execução prévia”, que permite à Administração executar as suas decisões por autoridade própria;
g) Garantias jurídicas dos administrados: também o sistema administrativo Francês, por assentar num Estado de Direito, oferece aos particulares um conjunto de garantias jurídicas contra os abusos e ilegalidades da Administração Pública. Mas essas garantias são efectivadas através dos Tribunais Comuns.
Estas, características originárias do sistema administrativo de tipo francês – também chamado sistema de administração executiva – dada a autonomia aí reconhecida ao poder executivo relativamente aos Tribunais.
Este sistema, nasceu em França, vigora hoje em quase todos os países continentais da Europa Ocidental e em muitos dos novos Estados que acederam à independência no séc. XX depois de terem sido colónias desses países europeus.
9. Confronto entre os sistemas de tipo britânico e de tipo francês
Têm, vários traços específicos que os distinguem nitidamente:
- Quanto à organização administrativa, um é um sistema descentralizado. O outro é centralizado;
- Quanto ao controlo jurisdicional da administração, o primeiro entrega-o aos Tribunais Comuns, o segundo aos Tribunais Administrativos. Em Inglaterra há pois, unidade de jurisdição, em França existe dualidade de Jurisdições;
- Quanto ao direito regulador da administração, o sistema de tipo Britânico é o Direito Comum, que basicamente é Direito Privado, mas no sistema tipo Francês é o Direito Administrativo que é Direito Público;
- Quanto à execução das decisões administrativas, o sistema de administração judiciária fá-la depender da sentença do Tribunal, ao passo que o sistema de administração executiva atribui autoridade própria a essas decisões e dispensa a intervenção prévia de qualquer Tribunal;
- Enfim, quanto às garantias jurídicas dos administrados, a Inglaterra confere aos Tribunais Comuns amplos poderes de injunção face à Administração, que lhes fica subordinada como a generalidade dos cidadãos, enquanto França só permite aos Tribunais Administrativos que anulem as decisões ilegais das autoridades ou as condenem ao pagamento de indemnizações, ficando a Administração independente do poder judicial.