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C - A AXIOLOGIA DO DIREITO

 

O PROBLEMA AXIOLÓGICO DO DIREITO

 

21. A ideia de Direito Natural

A ideia de Direito Natural tem como elemento comum unificador e identificador a ideia de existência de uma ordem normativa, imanente e manifestada na natureza ou na realidade, que é como que o paradigma, o modelo ou o arquétipo a que deve subordinar-se o direito positivo, que deve procurar explicitá-lo, desenvolvê-lo e concretizá-lo nas ordens normativas que estabelece ou constitui.

Sendo um Direito ideal, o Direito Natural tende a ser concebido ou pensado como algo tão permanente ou intemporal – ainda que apenas no plano formal, variando ou podendo variar historicamente os seus conteúdos concretos – como permanente e supra temporal é essa ordem normativa essencial e supra-empírica que rege ou estrutura a natureza ou a realidade cósmica, social e humana.

Por outro lado, a ideia de existência de um Direito Natural contraposto ao Direito positivo, faz apelo a uma determinada ideia ou noção de natureza, na qual se conteria, implícita mas cognoscível, essa legalidade ou normatividade que constitui o Direito Natural, e segundo a qual essa mesma natureza seria permanente e imutável, o que explicaria a permanência e a imutabilidade quer seriam atributos do Direito Natural.

A ideia de Direito Natural implica ou pressupõe quatro ideias ou noções complementares ou essenciais:

a) A de que existe uma natureza permanente, constante e imutável;

b) A de que essa natureza contém em si, como seu elemento intrínseco essencial e estruturante, uma determinada legalidade ou ordem normativa;

c) A de que o homem pode ascender ao conhecimento dessa legalidade ou dessa ordem normativa que se contém ou se manifesta na natureza;

d) A de que o Direito positivo, enquanto ordem normativa humana reguladora da conduta e da convivência social, retira a sua validade da conformidade com essa legalidade ou ordem normativa natural, que deve ser o seu modelo ou paradigma.

 

22. A ideia de natureza

O termo natureza é dos mais equívocos e plurissignificativos dos com que lido o pensamento filosófico, pelo que não será de estranhar que, quando usado ou contido na designação Direito Natural, essa sua característica igualmente se revele.

Ele tem, desde logo, um duplo sentido ou significado, que se pode qualificar, respectivamente de cosmológico ou físico e de ontológico.

No primeiro sentido, o tema natureza reporta-se ao universo da matéria e da vida, contrapondo-se, então, ao domínio psíquico ou ao reino espiritual, enquanto, no segundo, designa o que faz que cada ser ou ente seja o que verdadeiramente é, equivalendo então a substância ou essência, como quando se fala na natureza humana ou na natureza das coisas.

23. Concepção essencialista ou substancialista do Direito Natural

a) Concepção cosmológica

Esta concepção individualiza-se por referir o Direito Natural à ideia de natureza como ordem cósmica, que contém em si a sua própria lei, fonte da ordem em que se processam os movimentos dos corpos que se articulam os seus elementos constitutivos ou essenciais.

b) Concepção teológica

Se o pensamento pré-socrático e, de certa maneira, a tragédia grega, em especial Ésquilo e Sófocles, representam de forma paradigmática e exemplar o jusnaturalismo essencialista ou substancialista de feição ou inspiração cosmológica, a versão predominantemente teológica deste modo de pensar o Direito Natural encontrou na filosofia medieval e, de modo eminente em Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Suarés a sua mais acabada expressão.

O primeiro, fundindo em síntese original platónica e a sua teoria das ideias com a teologia e o pensamento cristão, sustentou que a ordem universal ou a ordem do mundo é regida pela lei eterna, dimanada de Deus, cujas ideias são os arquétipos eternos das coisas.

Por sua vez, a lei natural é entendida como participação do homem na lei eterna e encontra-se impressa na alma humana, dela devendo os legisladores extrair as regras de conduta, as normas ou as leis mais adequadas ao condicionalismo histórico.

São Tomás de Aquino e, em geral, o pensamento filosófico-escolástico desenvolveram estas ideias, designadamente o conceito de leis e suas espécies e a distinção entre as duas formas de Direito Natural.

Para o Aquinatense, a lei era definida como “prescrição da razão prática, em ordem ao bem comum, promulgada por quem tem o cuidado da comunidade”. Toda a lei deriva da lei eterna, na medida em que participa da recta razão.

A lei natural decorre da natureza humana, é participação da lei eterna na criatura racional, tendo sido promulgada através da sua impressão na mente do homem, pelo que é naturalmente cognoscível.

A mutação da lei natural pode verificar-se por dois modos: ou ela adição de novas realidades ou por subtracção, deixando certos preceitos particulares de ser lei natural.

c) Concepção antropológica

A versão antropológica do jusnaturalismo essencialista ou substancialista encontrou a sua expressão vincada e significativa no pensamento pós-renascentista, racionalista e iluminista, em especial em Grócio, Hobbes, Espinosa, Puffedorf e Locke.

Para esta corrente de pensamento filosófico-jurídico, o fundamento do Direito Natural deixa de ser Deus e a lei eterna dele directamente derivada, para passar a encontrar-se na razão humana ou na natureza racional do Homem.

 

24. Concepção formalista do Direito Natural

Esta segunda grande concepção do Direito Natural tem a sua origem no pensamento Kantiano, tendo encontrado a sua mais acabada expressão na corrente neo-Kantiana desenvolvida em Marburgo, no final do séc. XIX em especial por Rudolf Stammler.

Para esta corrente neo-Kantiana (o ser), aliás inacessível ao conhecimento, não é possível retirar ou fazer derivar nenhuma norma ou princípio ético (dever-ser), que só na razão pode encontrar-se. Tal princípio, de natureza racional, formal ou universal, na sua máxima generalidade, como imperativo ético categórico, apresentar-se-ia da seguinte forma: “age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da Natureza”[5].

 

25. Concepção existencialista do Direito Natural

O pensamento filosófico-jurídico desenvolvido a partir da perspectiva existencial vem, neste ponto, a opor-se a qualquer das correntes jusnaturalistas anteriores, ao negar que exista qualquer essência, substância ou natureza humanas, comum a todos os homens e dada previamente como virtualidade ou potencia que a cada um caiba passar a acto ou realizar, pois sustenta que no Homem a existência precede a essência e entende que aquela resulta da dialéctica entre a natureza das coisas e a vocação do Homem, entre o dado e as circunstâncias exteriores, a situação em que o Homem se encontra e aquilo que a sua radical liberdade constrói, no caminho sempre ameaçado entre o ser ele próprio e o fracasso, a alienação ou a alteração.

 

A JUSTIÇA

 

26. A problemática da Justiça

A problemática da Justiça é, simultaneamente, ontológica, gnosiológica e metafísica, defronta-se com três interrogações fundamentais: que é a Justiça? Como é possível conhecê-la? Porque é a Justiça, qual é o seu fundamento?

Na consideração do problema ontológico da Justiça, na tentativa de saber o que ela é em si, duas perspectivas são possíveis, pois que ela apresenta dois diversos sentidos ou duas faces complementares, podendo ser considerada de um ponto de vista subjectivo, como virtude individual, como atributo do Homem justo, ou de um ponto de vista objectivo, como valor, princípio, ideia ou ideal.

A primeira perspectiva é adoptada pela Ética, enquanto a segunda, é a própria da Filosofia do Direito e da Axiologia.

A circunstância, porém, durante largos séculos, a reflexão sobre a Justiça se ter desenvolvido quase exclusivamente no âmbito da Ética e de ser relativamente tardia a autonomia especulativa da Filosofia do Direito marcou profundamente o modo de concebê-la, sendo fonte de não pequeno número de dificuldades com que, ainda hoje, se defrontam a Axiologia e a Filosofia do Direito.

Duas advertências cabem fazer aqui. A primeira para notar que, quando considerada como virtude, a Justiça individualiza-se, face às restantes, pode dizer respeito a acções e não a paixões e pela sua bilateralidade, por se referir sempre e necessariamente a relações intersubjectivas.

A segunda observação será para recordar que, sabem que estas duas perspectivas ou estes dois modos de considerar ou de pensar a Justiça sejam complementares, o segundo (objectivo) tem prioridade lógica e axiológica sobre o primeiro (subjectivo), dado que, sendo a Justiça virtude do Homem que age rectamente, necessário se torna, para defini-la saber o que é, em si, a Justiça como valor, princípio, ideia ou ideal.

 

27. O princípio da Justiça

A Justiça é acima de tudo e antes de mais, liberdade, que implica respeito pela personalidade livre de cada um ou por cada Homem enquanto pessoa. Mas se não é a lei que nos pode dizer o que é devido a cada um, nem a Justiça se reporta apenas a bens exteriores, as coisas ou a cargos, se o seu a que se refere é o próprio de cada um, num sentido ontológico radical, vindo a consistir na liberdade e na personalidade e no que uma e outra implicam de direitos e bens exteriores, isto é, de propriedade, então deve concluir-se que a Justiça não depende nem pode procurar-se ou fazer-se residir na generalidade da lei, antes se encontrando na diversidade do concreto, do singular e do individual.

Se é exacto que, a inadequação entre Justiça e igualdade é menos evidente e clara, subsiste ainda aqui, todavia, uma não coincidência entre elas, porquanto nessa consideração analítica de certos aspectos da realidade ou da situação humana há sempre, inevitavelmente, um esquecimento, uma indiferença ou um ocultamento de que individualiza e distingue-se as situações, as pessoas e as relações entre elas e entre elas e as coisas e a própria diversidade real e funcional das coisas, que contêm já em si, virtualmente, uma injustiça ou uma Justiça incompleta ou imperfeita, que põe ou pode pôr em perigo o seu ou o próprio de cada um dos sujeitos em causa.

Com efeito, exigindo a Justiça plena e perfeita o integral respeito e consideração pelo individual e pelo singular e concreto de cada homem, envolve, em si, o Homem todo e não aspectos dele abstractamente considerados.

Daí que, se a igualdade pode ser e tende a ser o critério da Justiça legal ou da Justiça que se exprime na lei, de modo sempre imperfeito, dada a sua generalidade, que corresponde a uma abstracta média, a uma imagem ou um modelo mental e não a qualquer concreta singularidade, que nunca com ela plenamente se conforma, nunca pode ser o fundamento e o critério essencial e decisivo da Justiça enquanto valor, princípio, ideia ou ideal.

Se a Justiça é sempre concreta, se o seu fundamento ou o seu critério essencial não pode ser a igualdade e se a lei, na sua generalidade, não é a forma mais adequada da justiça, perde sentido a distinção clássica entre a Justiça, entendida como conformidade com a lei, e a equidade, concebida como correcção da generalidade da lei quando esta se revela claramente inadequada para reger o caso concreto e para dar a este uma solução mais justa do que a que da aplicação daquela resultaria, pois tal como se pensa, a verdadeira Justiça é sempre equidade.

 

28. Atributos da Justiça

A Justiça como valor, princípio, ideia ou ideal não pode ser concebida ou pensada como algo de substancial ou entitativo; ela é antes o que é o próprio do justo, o que o faz ser justo e que se revela pela sua negação ou pela sua ausência, isto é, pela injustiça.

Sendo princípio, valor, ideia ou ideal, a Justiça é um insubstancial que de nada depende mas do qual, no mundo jurídico, tudo depende.

Por outro lado ainda, porque é insubstancial e concreta, a Justiça não é susceptível de ser objectivada ou aprisionada ou expressa em fórmulas ou regras, de ser limitada ou delimitada por qualquer definição. Verdadeiramente real é a injustiça. A Justiça, pelo contrário, sendo o nada de que tudo depende, não existe em si, não tem ser, é uma meta, um objectivo nunca plenamente realizado ou alcançado, é uma intenção ou uma intencionalidade, é a luta permanente, infindável e sempre recomeçada pela sua própria realização.

Resulta serem ainda atributos da Justiça a alteridade ou bilateralidade, já que se refere ou se reporta às relações entre os Homens, a quem outros Homens ou a sociedade devem dar o que é próprio a cada um; a equivalência ou a proporcionalidade, que impõe que haja equilíbrio ou punidade entre as prestações de cada um dos sujeitos da relação.

Decorre ainda algumas importantes consequências:

Cumpre notar que as diversas fórmulas ou regras de Justiça tradicionalmente apresentadas, ou revelam do puro domínio da Ética, como acontece com a honeste viverem ou são meras variantes particularizadas do princípio essencial do suum cuique tribuere, como ocorre com o neminem laedere ou com o pacta sunt servanda, pois o não prejudicar ninguém ou o respeitar os compromissos validamente assumidos mais não são do que formas de dar a cada um o que lhe é devido.

Em, segundo lugar, deve notar-se que, do ponto de vista da Justiça, é mais decisiva a aplicação da lei do que a própria lei, porquanto é então que, em concreto, o direito se realiza e o próprio de cada um se afirma e define, o que, obviamente, não impede um juízo sobre a Justiça ou a injustiça da lei em si.

Desta conclusão uma outra deriva: a de que, na concreta realização da Justiça, é mais decisivo o papel do juiz do que o do legislador, da jurisprudência do que da lei. De igual modo, o costume e a norma, e pela sua menor abstracção e generalidade, pela sua maior proximidade do concreto, pela sua origem mais vivencial do que racional-voluntária, mais colectiva do que individual, poderá garantir melhor do que aquela uma solução justa.

Por outro lado, esta visão de Justiça vem pôr a claro a inadequação do modo de entender a sentença como meio processo lógico formal, como um raciocínio silogístico e chamar a atenção para que o dizer o direito – a jurisdição – do caso concreto, o juízo de legalidade que o juiz profere, é condicionado, precedendo em larga medida, determinado por um juízo de Justiça de natureza intuitivo-emocional, ditado pelo sentido de Justiça.

 

29. Gnosiologia da Justiça

Porque a Justiça é valor, princípio, ideia ou ideal e, por isso, insubstancial, não é susceptível de ser apreendida ou aprisionada por uma definição, na medida em que esta é sempre um pôr limites, um marcar de contornos de uma aspecto da realidade.

Por outro lado, a sua natureza de valor, princípio, ideia ou ideal impede-a de ser objecto de um conceito, pois é o resultado das possibilidades criadoras da razão e os valores, os princípios e os ideais transcendem a razão e ano dependem dela na sua existência, e apenas na sua efectividade e na sua realização parcialmente dela quedam dependentes.

O conhecimento que da Justiça alcançamos é um conhecimento concreto, existencial, um conhecimento imediato, intuitivo e emocional, em que o sentimento inato de Justiça tem um papel decisivo e determinante, não dispensando, porém, a colaboração ou a participação de elementos racionais, que laboram a partir dos dados fornecidos por aquele primeiro conhecimento intuitivo-emocional.

Sendo pois insusceptível de ser definida ou deduzida genérica e abstractamente pela razão, a Justiça apenas pode ser intuída no caso concreto, mediante a emoção ou o sentimento avaliador ou sentimento moral ou de Justiça, do qual, contudo, é possível dar razão, pois possui a sua verdade que, não sendo do domínio lógico-dedutivo, não deixa de ter a validade e garantia, próprias das “razões do coração”, da experiência imediata e da vivência dos valores.

 

30. A Justiça e os outros valores jurídicos

Se a Justiça é o princípio ontológico do Direito, o valor que fundamento e o ideal que ela visa realizar, não é, no entanto, o único valor ou o único fim que o direito serve ou procura tornar efectivo.

Assim, é corrente atribuir-lhe outros fins ou indicar outros valores como jurídicos. É o que acontece com a ordem, a paz, a liberdade, o respeito pela personalidade individual, a solidariedade ou a cooperação social e a segurança como fins do direito ou como valores jurídicos que coexistem com a Justiça no firmamento axiológico do Direito, conveniente se tornando, por isso, estudar o modo como ela se articula e compatibiliza.

 

[5] Kant, in Fundamentação da Metafísica dos Costume.
 

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