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F - VIGÊNCIA TEMPORAL DA LEI

 

33. Introdução

Uma das decorrências do princípio da legalidade é que não há crime sem uma lei anterior ao momento da prática do facto que declare esse comportamento como crime e estabeleça para ele a correspondente sanção[19].

Em Direito Penal vigora portanto a lei do momento da prática do facto. Mas a aplicação externa ou exacerbada deste princípio poderia levar a situações injustas. Donde o princípio geral em matéria penal é de que as leis penais mais favoráveis aplicam-se sempre retroactivamente.

 

34. Aplicação da lei

Qual é a lei que no momento do julgamento o juiz devia aplicar ao arguido? É a lei do momento da prática do facto, que é a mas favorável, do que a lei posterior, ainda que essa lei tenha revogado aquela. Existe ultra-actividade da lei penal, porque se aplica sempre a lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido.

O momento da prática do facto é sempre aquele em que, no caso de se tratar de um crime comissivo ou por acção, o agente actuou, ou, no caso de se tratar de um crime omissivo, no momento em que o agente deveria ter actuado.
Duas situações

Uma nova lei vem descriminalizar uma determinada conduta. Como deve reagir a ordem jurídica? Se a conduta vier a ser descriminalizada não deve ser condenado por essa conduta, mesmo que o agente tenha já sido condenado e se encontre detido (art. 2º/2 CP). Cessa os efeitos penais – princípio da aplicação da lei mais favorável.

Regime que se revela concretamente mais favorável, deve-se aplicar este regime ao agente.

No entanto a lei no art. 2º/4 CP coloca um limite para o efeito retroactivo – “salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado”. É diferente dos efeitos da descriminalização.

Há autores que defendem a inconstitucionalidade do art. 2º/4 CP, outros defendem a sua constitucionalidade.

 

35. Constitucionalidade do art. 2º/4 CP

A Constituição de 1976 foi revista em 1982, o Código Penal é de 1982 e entrou em vigor em 1983; donde, o legislador penal deveria ter conhecimento das disposições constitucionais e se legislou ordinariamente consagrando esta ressalva, é porque a ressalva não é incompatível com o disposto na Constituição, por ser legislação posterior.

Não é incompatível o art. 2º/4 CP com o art. 29º/4 CRP, na medida em que a Constituição manda aplicar retroactivamente a lei de conteúdo mais favorável ao arguido, e arguido tem um sentido técnico-jurídico rigoroso: uma coisa é arguido, outra é condenado e outra ainda é réu.

O art. 2º/4 CP, diz que a lei penal de conteúdo mais favorável só não se aplica ao condenado, e isto porque, se já há trânsito em julgado da sentença condenatória, é porque esse indivíduo já foi condenado, não se estando a falar em arguido mas sim em condenado.

A entender-se o contrário, ou seja, a entender-se a aplicabilidade da lei mais favorável, pôr-se-ia em causa o princípio “ne bis in idem”, e também se poria em causa a intangibilidade no caso julgado.

Se realmente se pudesse aplicar retroactivamente esta lei mais favorável, então estava-se a julgar outra vez o mesmo indivíduo pela prática do mesmo facto. E o princípio “in bis in idem”, de que ninguém deve ser julgado/condenado duas vezes pelo mesmo facto (art. 29º/5 CRP) era posto em causa.

 

36. Inconstitucionalidade do art. 2º/4 CP

O Direito Penal tem carácter subsidiário, é o princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Logo o Direito Penal só deve intervir quando se torne necessário a sua intervenção.

Não faz sentido que o Estado, equacionando uma valoração eminente a um determinado crime, se abstenha a partir de determinado momento de impor uma determinada punição; como também não faz sentido continuar a aplicar uma punição que o Estado recusou num determinado momento.

Esta ressalva é inconstitucional porque viola o princípio da igualdade, e também existe o princípio da igualdade dos cidadãos na administração da justiça.

Um outro argumento para a inconstitucionalidade da ressalva do art. 2º/4 CP, substancialmente não existem diferenças a que se aplique retroactivamente as normas que operam a descriminalização, das normas que não operam uma descriminalização mas principalmente uma despenalização, porque nos dois casos se altera o regime penal.

O que está em causa é uma diferente valoração do legislador quanto aos factos considerados crimes.

 

37. Leis temporárias e leis de emergência

As leis temporárias são as leis que marcam “ab initio”, à partida, o seu prazo de vigência; são as normas que se destinam a vigorar durante um determinado período de tempo pré-fixado. São leis temporárias que caducam com o “terminus” da vigência que pré-fixaram.

As leis de emergência são as leis que face a determinado circunstancialismo anormal vêm penalizar, criminalizar determinadas condutas que até aí não eram consideradas crime, ou vêm efectivamente agravar a responsabilidade penal por determinado facto que até aí já era crime, mas em que esse agravamento se deve tão só a situações ou circunstâncias anormais que reclamam a situação de emergência.

Ressalva-se no art. 2º/3 CP, que continua a ser punido o facto criminoso praticado durante o período de vigência de uma lei de emergência.

Significa que, não obstante no momento do julgamento a lei já não estar em vigor por já ter caducado ou já ter sido revogada, deve continuar a ser punido pelo facto que praticou durante esse período em que a lei estava efectivamente em vigor.

Em bom rigor, no âmbito das leis temporárias não há uma verdadeira sucessão de leis no tempo, porque:

- A lei é temporária em sentido estrito, não necessita de nenhuma outra lei para que se possa afirmar uma sucessão de leis penais no tempo; a lei é só uma só faz sentido falar em sucessão de leis penais no tempo e em retroactividade ou irretroactividade quando estão em causa mais do que uma lei, pelo menos duas leis. Aqui a lei é só uma.

- Não há uma lei diferente, não há uma sucessão de regimes, donde também não faz sentido falar em aplicação retroactiva porque a lei é sempre a mesma.

 

38. Aplicação da lei no espaço

Não são só conexões geográficas que o legislador utiliza para tornar aplicável a lei penal portuguesa, para que seja competente para julgar factos penalmente relevantes.

O legislador utiliza também a conexão dos valores ou dos interesses lesados ou ameaçados de lesão com as actividades criminosas, o valor dos interesses postos em causa pela prática do crime. Isto evidencia-se em sede de dois princípios:

- Princípio da tutela ou da protecção dos interesses nacionais.

- Princípio da universalidade ou de aplicação universal.

Vindo estes princípios consagrados no art. 5º CP.

 

39. Princípio da tutela ou da protecção dos interesses nacionais

Quando se trate de crimes expressamente consagrados no art. 5º/1 CP, são crimes que o Estado português entende ferirem a sensibilidade jurídica nacional, são crimes que põem em causa valores ou interesses fundamentais do Estado português.

Os factos penalmente relevantes ocorridos em território nacional, a lei portuguesa é competente para os julgar – princípio da territorialidade.

Este princípio da territorialidade é depois complementado pelo princípio do pavilhão ou da bandeira pelo qual independentemente do espaço aéreo ou das águas, a lei penal portuguesa também se aplica a factos praticados no interior de navios com pavilhão português, ou a bordo de aeronaves registadas em Portugal.

 

40. Princípio da universalidade ou da aplicação universal

São de alguma forma crimes que todos os Estados têm interesse em punir. De um modo geral, independentemente da nacionalidade dos seus autores, são crimes que reclamam uma punição universal e daí que as ordens jurídicas se reclamem competentes para fazer aplicar a sua lei penal a esses factos descritos no art. 5º/1-b CP.

Da alínea c) do art. 5º/1 CP retira-se o princípio da nacionalidade, também dito princípio da personalidade activa ou passiva.

O princípio da nacionalidade activa diz basicamente que a lei portuguesa se aplica a factos praticados no estrangeiro por portugueses. É de harmonia com o princípio da nacionalidade activo, que a lei penal portuguesa aplica-se a factos praticados no estrangeiro que sejam cometidos por cidadãos nacionais.

O princípio da nacionalidade passiva diz que a lei penal portuguesa se aplica a factos cometidos no estrangeiro contra portugueses.

Condições para o princípio da nacionalidade:

1º Condição: os agentes sejam encontrados em Portugal (art. 5º/1-b CP);

2º Condição: que os factos criminosos “sejam também puníveis pela legislação do lugar em que foram praticados, salvo quando nesse lugar não se exerça poder punitivo”;

3º Que “constituam crime que admite extradição e esta não possa ser concedida”, não se admite a extradição de cidadãos nacionais.

Esta condição prevista na 3ª condição, só funciona cumulativamente quando se trate de um caso de nacionalidade passiva, quando se trate de um crime praticado no estrangeiro por um estrangeiro contra um, português.

 

41. Teoria da ubiquidade

Visa abranger os delitos à distância.

O art. 7º CP é importante: se considerar que a conduta ou o resultado típico tiveram lugar em Portugal, então pode-se considerar que o facto ocorreu em território nacional; e aí poder-se-á aplicar a lei penal portuguesa por força do preceituado no art. 4º CP e que consagra o princípio da territorialidade, uma vez precisamente que este princípio vem dizer que a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados no território nacional.

Uma vez em sede do art. 5º CP vai-se analisar caso a caso:

- Se será o princípio da protecção dos interesses nacionais, poderá ser um dos crimes elencados no aliena a);

- Se haverá afloramento do princípio da universalidade (alínea b));

- Se será eventualmente o princípio da nacionalidade activa ou passiva previsto na alínea c); e aqui verificar se estão reunidas todas as condições previstas e se existem ou não restrições à aplicabilidade da lei portuguesa[20].

 

42. Princípio da dupla incriminação e princípio da especialidade

O princípio da dupla incriminação, significa que só é admitida a extradição se o Estado português considerar também crime o facto pelo qual se pede a extradição ou o facto que fundamenta a extradição.

O princípio da especialidade significa que a extradição só pode ser concedida para o crime que fundamenta o seu pedido, não podendo o extraditado ser julgado por uma infracção diferente e anterior à que fundamenta o pedido de extradição.

Por outro lado, também em princípio não se admite a extradição quando seja prioritariamente aplicável a lei penal portuguesa.

 

43. Princípio da administração supletiva da justiça penal (art. 5º/1-e CP)

Admite que o Estado português julgue um criminoso que tenha cometido um crime no seu país de origem contra um cidadão desse país e fuja para Portugal. Pressupostos:

- Que o agente se encontre em Portugal;

- A extradição seja pedida;

- Seja possível a extradição mas não seja admitida.

O art. 6º define as condições gerais de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos por estrangeiros:

- Princípio de que ninguém pode ser responsabilizado por um facto mais do que uma vez (art. 29º CRP);

- Art. 6º/2 CRP, depois de ver que lei penal é competente, tem-se que ter em atenção a lei do lugar onde o facto foi cometido, e mais favorável, mas que puna o facto.

As condições no art. 6º/2 CP não funciona quando está em causa o princípio da protecção dos interesses nacionais (art. 6º/3 CP).

 

[19] Nullum crimen nulla poena sine lege previa

[20] O art. 6º CP só tem conexão com o art. 4º CP e com os princípios da universalidade/protecção de interesses nacionais e nacionalidade.
 

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