E - Não Cumprimento das obrigações
130. Noção
Fala-se de não cumprimento da obrigação, para significar que a prestação debitória não foi realizada – nem pelo devedor, nem por terceiro –, e que, além disso, a obrigação não se extinguiu por nenhuma das outras causas de satisfação além do cumprimento, que o Código Civil prevê e regula nos arts. 837º segs. CC. O não cumprimento é, neste sentido, a situação objectiva de não realização da prestação debitória e da insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de onde a falta procede.
Na grande massa dos casos, o não cumprimento da obrigação assenta na falta da acção (prestação positiva) exigida do devedor. Mas pode também consistir na prática do acto que o obrigado deveria não realizar, nos casos menos vulgares em que a obrigação tem por objecto uma prestação negativa.
O não cumprimento, pode definir-se como a não realização da prestação debitória, sem que entre tanto se tenha verificado qualquer das causas extintivas típicas da relação obrigacional.
Em sentido muito amplo, há não cumprimento da obrigação desde que a prestação não seja realizada pontualmente. O que significa que não há não cumprimento tanto nos casos em que há não realização total da prestação, como naqueles em que a realização da prestação é apenas parcial; e tanto há não cumprimento nos casos em que a falta da prestação, total ou parcial é imputável, como naqueles em que não é imputável ao devedor.
Isto quer dizer que dentro do incumprimento tem-se que abrir várias subdivisões, porque elas têm regimes diferenciados.
Quando o incumprimento é total, isso significa que a vencida a obrigação não houve cumprimento de nada.
Se se tratar de cumprimento parcial, estamos perante uma situação em que o devedor cumpriu uma parte da prestação e omitiu o cumprimento da outra parte. Este pode ser quantitativamente parcial, ou qualitativamente parcial.
Qualquer destas modalidades de não cumprimento podem resultar, podem ser qualificadas ou não, por impossibilidade de cumprimento. Isto é, pode-se estar perante um total não cumprimento e esse não cumprimento total corresponder a uma impossibilidade de cumprir, o devedor não cumpre porque já não é possível cumprir.
Quando estamos perante um incumprimento não qualificado por impossibilidade, podemos estar perante uma de duas situações:
a) Um incumprimento temporário: ainda é possível cumprir e o devedor não cumpriu, caso em que se estará perante uma mora;
b) Pode-se estar perante um incumprimento definitivo: o cumprimento não está impossibilitado mas o credor, em consequência do não cumprimento pontual, perdeu o interesse no cumprimento.
131. Modalidades de não cumprimento quanto à causa[52]
Só nos casos de não cumprimento imputável ao obrigado se pode rigorosamente falar em falta de cumprimento.
Dentro do núcleo genérico de hipóteses de não cumprimento não imputável ao devedor interessa destacar ainda, pelo regime especial a que estão sujeitos, os casos em que a falta de cumprimento procede de causa imputável ao credor.
Por um lado, estão sujeitos a um regime próprio, consagrado nos arts. 813º segs. CC, os casos de mora do credor. Por outro, também no art. 795º/2 CC, se fixa um importante desvio estabelecido no art. 795º/1 CC, para o caso de a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor.
132. Modalidades do não cumprimento quanto ao efeito[53]
Há casos em que a prestação, não tendo sido efectuada, já não é realizável no contexto da obrigação, porque se tornou impossível ou o credor perdeu o direito à sua realização, ou porque, sendo ainda materialmente possível, perdeu o seu interesse para o credor, se tornou praticamente inútil para ele.
O não cumprimento definitivo da obrigação pode, com efeito, provir da impossibilidade da prestação ou da falta irreversível de cumprimento, em alguns casos equiparada por lei à impossibilidade (art. 808º/1 CC).
Ao lado destes casos, há situações de mero retardamento, dilação ou demora da prestação. A prestação não é executada no momento próprio, mas ainda é possível, por continuar a corresponder ao interesse do credor. Pode este ter sofrido prejuízo com o não cumprimento, em tempo oportuno; mas a prestação ainda mantém no essencial, a utilidade que tinha para ele.
133. Incumprimento imputável ao devedor
Genericamente, quando o não cumprimento é imputável ao devedor, este incorre em responsabilidade civil.
O art. 798º[54] CC, é uma disposição paralela à do art. 483º/1 CC, e contém o princípio geral da responsabilidade obrigacional, também designada vulgarmente por responsabilidade contratual.
A responsabilidade obrigacional, tem, tal como a responsabilidade extra-obrigacional ou delitual, vários pressupostos. Tem os mesmos pressupostos:
1. Facto voluntário do devedor;
2. Facto ilícito;
3. Culpa;
4. Tem de haver danos;
5. Tem de haver nexo causal entre o facto e o dano.
134. Principais diferenças de regime entre a responsabilidade extra-obrigacional
i) Quanto à ilicitude
Enquanto a ilicitude no domínio extra-obrigacional se traduz na violação de um direito subjectivo absoluto, ou de natureza familiar que em qualquer caso não é um direito de crédito.
Na responsabilidade obrigacional a ilicitude consubstancia-se justamente na violação do direito de crédito.
A ilicitude obrigacional, pode estar excluída pela verificação de uma circunstância que constitua uma causa de justificação do incumprimento.
As causas de justificação no domínio da responsabilidade obrigacional são:
a) Exercício de um direito;
b) Cumprimento de um dever;
c) Acção directa;
d) Legítima defesa;
e) Estado de necessidade;
f) Consentimento do lesado.
E ainda duas causas de exclusão ou de justificação do incumprimento privativas da responsabilidade obrigacional:
a) Excepção do não cumprimento
Se o contrato for sinalagmático e não houver prazos diversos para o cumprimento, um dos contraentes pode recusar licitamente o cumprimento da sua obrigação enquanto o outro não se dispuser a cumprir a dele.
b) Direito de retenção (art. 754º[55] CC)
É a faculdade que a lei concede ao devedor da entrega de uma coisa, de a reter, com fundamento no não cumprimento da obrigação que o credor da coisa resulte de despesas feitas pelo devedor com a coisa, ou de danos causados por ela.
ii) Quanto à culpa
A principal diferença entre o regime da responsabilidade obrigacional e extra-obrigacional, resulta da presunção de culpa que está consagrada no art. 799º/1[56] CC.
Ao invés do que se passa na responsabilidade extra-obrigacional, em que o ónus de prova da culpa cabe ao lesado em princípio (art. 487º/1 CC), na responsabilidade obrigacional, porque a lei presume a culpa do devedor, é ao devedor que incumbe provar que não teve culpa para afastar a sua responsabilidade.
Portanto, o credor para exercer o direito à indemnização não precisa de provar a culpa do devedor, uma vez que ela está presumida.
Quanto à forma de apreciação da culpa, o art. 799º/2 CC, remete para o art. 487º/2 CC, isto é, a culpa é apreciada na responsabilidade obrigacional, tal como na extra-obrigacional, em abstracto.
iii) Quanto aos danos indemnizáveis
Não há diferença essencial, podendo contudo discutir-se se aos danos não patrimoniais são indemnizáveis com fundamento em responsabilidade obrigacional.
iv) Quanto ao nexo de casualidade (entre o incumprimento e o dano)
Ele estabelece-se exactamente nos mesmos termos e pelo mesmo critério, que se define na responsabilidade extra-obrigacional. Aqui, inequivocamente a regra aplicável é a regra do art. 563º[57] CC, regra comum a qualquer forma de responsabilidade.
v) Prazo de prescrição
Enquanto que na responsabilidade delitual o prazo prescricional é o que resulta do art. 498º CC, prazo especial de três anos, embora articulado com o prazo da prescrição ordinária de vinte anos.
Na responsabilidade obrigacional a obrigação de indemnização prescreve no prazo ordinário, salvo se houvesse prazo especial de prescrição da obrigação incumprida.
Se a obrigação não cumprida tinha um prazo prescricional especial, é esse que se aplica à obrigação de indemnizar.
[52] Quanto à causa:
a) Inimputável ao devedor;
b) Imputável ao devedor.
[53] Quanto ao efeito:
a) Falta de cumprimento;
b) Mora;
c) Cumprimento defeituoso.
[54] O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
[55] O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.
[56] Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
[57] A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.